Sexta-feira, Março 29, 2024

Vitorino Nemésio e Natália Correia: açorianos, escritores e algo mais

Urbano Bettencourt

Vitorino Nemésio (1901-1978) e Natália Correia (1923-1993): dois (de muitos) autores que tiveram de sair da ilha para cumprir-se como cidadãos e como escritores também. Provenientes de diferentes ilhas (Terceira, S. Miguel, respectivamente), eles atestam o sentido de fuga e  dispersão  inscrito  na história açoriana como um signo, uma sina  concretizada em  rumos divergentes; neste caso, para Leste, um destino minoritário, porque o grande pólo  de atracção ( para grandes camadas do povo açoriano) sempre ficou a Oeste: primeiro o Brasil (desde muito cedo) e depois os Estados Unidos da América, especialmente as “Califórnias perdidas de abundância” (Pedro da Silveira), que se tornaram a figuração material da Terra  da Promissão. Não admira, pois, que no imaginário literário açoriano, a Atlântida ocupe um espaço residual – autores e leitores sabem que a felicidade há-de encontrar-se para diante e no futuro (mesmo que algumas personagens só atinjam o paraíso americano depois de atravessar o seu inferno).
Definitivamente desenraizado, Nemésio construiu uma obra em que a ilha à distância (“Ah, ovo que deixei, bicado e quente, / Vazio de mim, no mar, / E que ainda hoje deve boiar, ardente / Ilha…”) se tornou o núcleo   central de boa parte da sua escrita, enquanto objecto evocado ou metáfora no âmbito da reflexão sobre a condição humana em geral. No campo da lírica intimista (e já mesmo no seu livro escrito em francês), da narrativa ficcional, da crónica e do ensaio, os Açores entraram na sua obra como realidade territorial e social sucessivamente retomada e reformulada. Sem que isso colidisse com o seu estatuto de intelectual e escritor atento à literatura e à cultura do mundo por onde andou (especialmente Europa e Brasil) e que na sua obra encontraram acolhimento e “resposta” escrita.
Em 1932, e em dois textos diferentes mas com o mesmo título, Nemésio cunhou o termo “Açorianidade”, com que quis sintetizar um particular modo de ser do homem açoriano, da sua visão do mundo, moldado pelo tempo e pelo espaço (a história e a geografia), num contexto geral de distância e isolamento atlântico. Independentemente dos muitos textos e ocasiões em que pôde explanar a sua noção de açorianidade, há duas obras em que, de modo mais directo ou menos directo, Nemésio deixou elementos para a compreensão do conceito e daquilo a que podemos chamar o seu “pensamento insular”: “Corsário das Ilhas” (1956), um excelente livro de “revisitação” fluida e divagante dos Açores, e “Mau Tempo no Canal” (1944).
“Mau Tempo no Canal” é o romance da açorianidade enquanto experiência do universo insular em articulação com o mundo exterior. Sobre a moldura do tempo de finais da Primeira Grande Guerra Nemésio constrói uma história de amores contrariados, em que entretece o retrato da cidade da Horta em 1918 com a história política, social e geológica das ilhas. Memória  e facto, realidade e símbolo, texto literário e documento funcional, cultura erudita e popular cruzam-se numa obra compósita que é um romance de espaço (centrado nas ilhas do Faial, Pico e S. Jorge, com reenvios a outras e um epílogo na Terceira) e da sua influência sobre o homem, mas é igualmente o romance de uma personagem –  Margarida Dulmo, uma personagem de excepção, tão próxima do seu contexto social (uma aristocracia decadente e hipotecada já aos descendentes de uma linhagem de comerciantes ingleses instalados na ilha um século antes, ambas hipotecadas, finalmente, ao pequeno   industrial de S. Jorge, barão queijeiro por obra e graça dos serviços eleitorais prestados ao  liberalismo), mas ao mesmo tempo suficientemente afastada dele para poder observá-lo de forma lúcida e criticá-lo.
Em Margarida Dulmo, Nemésio polariza a tensão (o conflito) entre o apego, o amor à terra e o desejo de partida e de viagem.
E essa polaridade marca, afinal, uma parte substancial da expressão poética de Natália Correia.
É muito provável que a escritora tenha sido vítima da figura pública, da ‘persona’ que ela mesma criou e cultivou, transbordante e excessiva. E que a sua intervenção cívica, anterior e posterior a Abril de 1974, tenha por vezes relegado para um plano de penumbra uma obra extensa e diversificada, da poesia ao romance, à novela e ao texto dramático, da crónica ao ensaio. E, no entanto, importa referir que o combate de Natália pela democracia e pela liberdade passou muito por algumas das suas obras, ao desafiar os poderes instituídos, num tom não raro oscilando entre o do tribuno e o do profeta, e ao denunciar noutros casos o mal do mundo como causa do seu nascimento poético: “Eu nasci  de haver /os bairros da lata…”. Esse olhar sobre o mundo não se limitará ao universo português e às imagens da Europa e dos seus mitos, mas projectar-se-á sobre América, na crónica de viagem que, por contraste, lhe permitiu descobrir a sua identidade (Descobri que era europeia,1951).
Numa dimensão mais pessoal e subjectiva, a voz poética de Natália sublinhará a relação com a “ilha ao longe”, a ilha matricial, tão presente e íntima no seu último livro, “Sonetos Românticos” (1990), enquanto evocação e transfiguração simbólica em “centro místico” de onde se arranca em busca de uma nova espiritualidade  – enunciada já num livro como  “O Dilúvio e a Pomba”   (1979) em que a açorianidade ganha sentido com o reenvio à espiritualidade  popular em torno do Espírito Santo. E justifica-se assim a deriva poética entre o espaço originário e o território de exílio: “…sempre a chegar a Lisboa / e sempre a ficar na ilha.” Essa ilha exclusiva, matéria íntima (“em rigor só a há uma ilha, a minha, meu mistério…”) constituirá sempre um reduto último contra o desenraizamento e a experiência da Babilónia urbana.
Duas vozes pessoais e não replicáveis, Nemésio e Natália concretizam um modo literário de ser açoriano em que a experiência do mundo não perdeu de vista a ilha, lugar de representações e objecto de sucessivas e renovadas reformulações. λ

(A obra poética de Natália Correia encontra-se reunida em “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”, 2 vols.)

Partilhe este artigo:

- Advertisement -
- Advertisement -

Artigos recentes | Recent articles

Um país na flor da idade

Nos últimos 20 anos Angola sofreu inúmeras transformações, desde a mais simples até à mais complexa. Realizou quatro eleições legislativas, participou pela primeira vez numa fase final de um campeonato do mundo, realizou o CAN e colocou um satélite em órbita.

David Cameron

David Cameron foi Primeiro-Ministro do Reino Unido entre 2010 e 2016, liderando o primeiro Governo de coligação britânico em quase 70 anos e, nas eleições gerais de 2015, formando o primeiro Governo de maioria conservadora no Reino Unido em mais de duas décadas.

Cameron chegou ao poder em 2010, num momento de crise económica e com um desafio fiscal sem precedentes. Sob a sua liderança, a economia do Reino Unido transformou-se. O défice foi reduzido em mais de dois terços, foram criadas um milhão de empresas e um número recorde de postos de trabalho, tornando-se a Grã-Bretanha a economia avançada com o crescimento mais rápido do mundo.

Conferências com chancela CV&A

Ao longo de duas décadas, a CV&A tem vindo a promover conferências de relevo e interesse nacional, com a presença de diversos ex-chefes de Estado e de Governo e dirigentes políticos de influência mundial.

As idas e vindas da economia brasileira nos últimos 20 anos

Há 20 anos, o Brasil tinha pela primeira vez um presidente alinhado aos ideais da esquerda. Luiz Inácio Lula da Silva chegava ao poder como representante máximo do Partido dos Trabalhadores (PT).

Uma evolução notável e potencial ainda por concretizar

Moçambique há 20 anos, em 2003, era um país bem diferente do de hoje. A população pouco passava dos 19 milhões, hoje situa-se em 34 milhões, o que corresponde a um aumento relativo de praticamente 79%, uma explosão que, a manter-se esta tendência será, sem dúvida, um factor muito relevante a ter em consideração neste país.

O mundo por maus caminhos

Uma nova ordem geopolítica e económica está a ser escrita com a emergência da China como superpotência económica, militar e diplomática, ameaçando o estatuto dos EUA. Caminhamos para um mundo multipolar em que a busca pela autonomia estratégica está a alterar, para pior, as dinâmicas do comércio internacional. Nada será mais determinante para o destino do mundo nos próximos anos do que relação entre Pequim e Washington. A Europa arrisca-se a ser um mero espetador.

Mais na Prémio

More at Prémio

- Advertisement -