Sábado, Julho 27, 2024

20 anos depois, estamos assim tão diferentes?

Os problemas estruturais que marcam, hoje, a realidade portuguesa, persistem na agenda há décadas. Neste cenário pouco esperançoso, poderíamos tender para a consideração de que nada mudou, em 20 anos. Todavia, atentando no quadro social, na dinâmica económica, na própria configuração do Parlamento ou até nos nossos meios de comunicação — cada vez mais digitais —, percebemos que a nossa realidade se transformou radicalmente. Duas décadas depois, este é, decerto, “outro país”, não deixando de ser “o Portugal de sempre”.

Blandina Costa

Luís Eusébio

Palavras como “sustentabilidade”, “electromobilidade”, “inteligência artificial” ou siglas como “ESG” e “LGBTQIA+” mostram um mundo bem diferente daquele que existia em 2003. Na altura, já fazíamos contas em euros, mas ainda estávamos a dar os primeiros passos no universo da Internet. Hoje, vivemos nas redes sociais, ouvimos músicas em plataformas digitais, compramos ‘online’ e usamos aplicações móveis para pagar as nossas contas. Estamos apetrechados com o mundo de possibilidades dos ‘smartphones’ e ‘smartwatches’. Somos, cada vez mais, adeptos dos carros eléctricos e estendemos milhares de ciclovias pelo país.

De um mundo mais fechado e conservador, passámos para um cenário em que pessoas do mesmo sexo podem casar, em que é legal interromper voluntariamente a gravidez até às 10 semanas de gestação e em que se debate a eutanásia. Acompanhamos as tendências que vão moldando um mundo onde a pirâmide de poder coloca, progressivamente, a China no topo, numa balança global que pende, notoriamente, para o quadrante asiático. Ficou evidente a dependência que a Europa e os Estados Unidos têm das fábricas asiáticas, nas quais se produz grande parte dos ‘chips’ e dos semicondutores, que incorporamos nos nossos carros e equipamentos.

A própria União Europeia (UE) reconfigurou-se, ainda no rescaldo da queda do Muro de Berlim. O maior alargamento da sua história aconteceu logo em 2004, com a entrada de 10 novos países, seguindo-se mais três entradas, em 2007 e 2013. No entanto, com o Brexit, a esta Europa de 28 subtraiu-se, em 2020, o Reino Unido. Estas mudanças profundas estendem-se até hoje: a morte da Rainha Isabel II, símbolo inequívoco de estabilidade, durante 75 anos, deu lugar a uma nova era. Em 2023, coroou-se o Rei Carlos III, o mesmo ano em que se celebram os 650 anos da mais antiga aliança do mundo, reafirmando as relações bilaterais entre Portugal e Reino Unido.

Mudámos muito, porém, agora — como há vinte anos —, continuamos familiarizados com duas palavras: “crise” e “guerra”. De uma crise económica, resultante da bolha das “dot-com”, chegámos a crises pandémicas e energéticas, tendo passado por uma crise financeira internacional. Da guerra no Iraque, no rescaldo do ataque terrorista às Torres Gémeas em Nova Iorque, partimos para uma guerra às portas da Europa, com a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Portugal não só não é alheio a estes acontecimentos, como defronta agora múltiplos (e repetidos) obstáculos. Em 2003, o país “estava de tanga”, como descreveu o recém-chegado primeiro-ministro social-democrata, Durão Barroso, referindo-se à crise económica que se vivia. Hoje, enfrentamos uma crise inflacionista, depois de uma crise de saúde pública, sempre acompanhados de uma alarmante crise ambiental, que parece não ter fim à vista.

Neste contexto, a turbulência política e social é visível. Sucedem-se greves e manifestações de professores, médicos, enfermeiros ou jovens activistas, por exemplo, num país onde os mais novos só conseguem vislumbrar um futuro digno fora das fronteiras. A preocupante emergência da direita radical e populista evidencia o descontentamento de uma população que vive endividada perante o aumento do custo de vida, marcado pela inflação e pela subida das taxas de juro.

Mas, contas feitas, estamos mais ricos ou mais pobres? Vivemos melhor ou pior do que em 2003? Qual é a relação entre os ciclos económicos e políticos? (ver infografia pág. anterior)

Após tantos abalos, quão robusta está a economia portuguesa?

Um olhar atento à evolução da taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) evidencia as dificuldades que o país atravessou, nas últimas duas décadas. Neste período, contam-se seis anos de recessão. Só alcançámos taxas de crescimento acima dos 3% — valor médio registado na última década dos anos de 1900 — em três anos.

Da crise das dívidas soberanas à crise pandémica, passando por um resgate internacional

Principiámos o século XXI com a crise económica, nascida do rebentamento da bolha das “dot-com”, após a euforia das tecnológicas com o advento da Internet. Seguiu-se uma derrocada bolsista, que abalou toda a economia global, nos anos seguintes. Portugal não escapou ao contágio. Em 2003, o país já provava o sabor amargo da recessão.

Na memória dos portugueses está mais fresca a crise desencadeada pela pandemia de COVID-19. Porém, os piores anos de recessão aconteceram antes disso, na sequência da crise financeira internacional — iniciada com a célebre queda do banco americano Lehman Brothers, em 2008, conhecida como “crise do subprime”. Essa crise levou Portugal, em 2011, a seguir os passos da Grécia, com a solicitação de um resgate internacional à “Troika” — conjugação de FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia —, no valor de 78 mil milhões de euros.

Esta crise foi uma das duas mais longas da história da economia portuguesa, tendo em conta o tempo dedicado à recuperação do PIB para níveis anteriores: começou em 2009 (seguindo a crise financeira mundial) e terminou apenas em 2018 (quando o PIB ultrapassou o valor de 2008).

Como evoluíram os principais indicadores económicos do país e a posição de Portugal na Europa?

Ao fim de duas décadas (e múltiplas crises), o país ficou relativamente mais pobre, comparativamente com os seus parceiros europeus. No início do século XXI, o PIB ‘per capita’ era de 85% da média europeia. Até 2022, esse valor regrediu para 77%, segundo estimativas preliminares, igualando assim o da Roménia que, em 2000, tinha apenas um terço do PIB ‘per capita’ português. Só cinco países da UE estão, hoje, piores do que Portugal: Letónia, Croácia, Grécia, Eslováquia e Bulgária.

Resumindo, em 2003, cada português produzia uma riqueza de 17.253,1 euros (PIB ‘per capita’ a preços constantes), valor bastante similar aos 18.949,5 euros registados em 2021 (últimos valores disponíveis).

O Banco de Portugal fez as contas: entre 2000 e 2020, o crescimento médio anual do PIB real ‘per capita’ foi de apenas 0,3%. Os anos da pandemia de COVID-19 contribuíram fortemente para esta queda. No entanto, mesmo se os excluirmos, o crescimento médio foi de 0,8% — valor bem distante da taxa média anual da segunda metade do século passado (3,9%).

Mesmo com um crescimento insignificante, isso não significa que esteja tudo igual. Analisando com mais detalhe os vários ramos de actividade e os seus respectivos contributos para a produção de riqueza, o ex-ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, constata que o perfil da economia portuguesa se alterou. O peso da construção e do imobiliário diminuiu, bem como o dos serviços financeiros. Por outro lado, o turismo e as tecnologias de informação e comunicação conquistaram importância. A indústria cresceu à boleia das exportações, que atingiram um peso de 50% no PIB nacional. Como referência, verificamos que, em 2003, as vendas ao exterior valiam apenas cerca de 28%.

Examinando um caso específico, a nossa dependência económica do turismo intensificou-se. O contributo desse sector para o PIB nacional cresceu de 4,5%, em 2003, para 10,9%, em 2022.

Mesmo mostrando sinais promissores, para que a economia possa crescer, revela-se crucial diminuir o endividamento, quer do sector público, quer do sector privado, sobretudo numa época de subida das taxas de juro.

O caminho atribulado das contas públicas

Na sequência da crise das dívidas soberanas, que levou Portugal a pedir o resgate internacional em 2011, a dívida pública atingiu um máximo de 132,9% do PIB, em 2014. Tendo Portugal saído do resgate financeiro internacional no período definido de quatro anos, nos anos seguintes foi possível reduzir, de forma significativa, o rácio da dívida, que em 2019 era já 116,6% do PIB. Nesse ano, Portugal assinalou outro feito nas contas públicas, com as administrações públicas a registarem o primeiro excedente orçamental da democracia portuguesa: 0,1% do PIB.

O ministro das Finanças da época, Mário Centeno, atribuiu este feito à dinâmica da economia e do mercado de trabalho, que permitiu incrementar a receita fiscal e as contribuições das empresas para a Segurança Social. De facto, o país conseguiu reduzir a taxa de desemprego do pico histórico de 17,1%, em 2013, para menos de metade. Em 2022, situava-se nos 6,5%.

A Portugal valeu a política monetária acomodatícia (‘quantitative easing’) do Banco Central Europeu, até meados de 2022, que beneficiou as contas públicas nacionais, como afirmou, em 2016, o presidente do BCE, Mario Draghi, numa sessão com os eurodeputados: “As reduções das taxas de juro do BCE estão a beneficiar, em grande medida, países vulneráveis da zona euro, e a fragmentação dos custos de financiamento e as condições de empréstimo em diferentes países têm diminuído.”

A trajectória das contas públicas e da economia nacional parecia apontar para um futuro mais risonho, todavia, a pandemia de COVID-19 não deu tréguas. A dívida pública em percentagem do PIB voltou a disparar para o máximo histórico de 134,9%, em 2020. Já o saldo orçamental das administrações públicas registou um ‘déficit’ elevado, de 5,8% do PIB.

Após este tombo, em 2023, a economia portuguesa apresenta já sinais de recuperação. O rácio da dívida pública no PIB passou para 113,9% em 2002 e, recentemente, o Fundo Monetário Internacional mais do que duplicou a projecção de crescimento de Portugal para este ano (de 1% para 2,6%).

Conseguiremos aproveitar estes ventos favoráveis para estabilizar o rumo do país e contrariar a ideia (confirmada nos últimos 20 anos) de que Portugal está condenado à cauda da Europa?

Além das crises, os motivos estruturais para a nota “medíocre” do país

Um estudo da SEDES sobre o desenvolvimento económico de Portugal, que analisa as primeiras décadas do século XXI, dá uma nota “medíocre” à evolução do país, apontando factores estruturais que explicam o reduzido crescimento: “Nos últimos 20 anos, o país tem-se revelado incapaz de acumular capital e estimular o crescimento da produtividade do factor “trabalho”. Desde 2000, Portugal tem registado níveis de investimento fracos, com reduzida ou negativa eficiência marginal do capital investido, dentro de 10 anos, a produção ‘per capita’ potencial em Portugal não irá além de 35% da do Luxemburgo ou 41% da Irlanda”.

Para o país experienciar um aumento do nível de vida, seria necessário incrementar a produtividade do factor “trabalho’”. Contudo, isso não tem acontecido, segundo o estudo da SEDES. Simultaneamente, precisaríamos de atrair investimento de qualidade, o que, por sua vez, exige a incorporação de conhecimento e tecnologia na produção.

A este contexto teremos de adicionar o elevado nível de impostos que sobrecarrega os portugueses. Os dados de 2022, divulgados pelo INE, revelam uma carga fiscal em percentagem do PIB de 36,4%. Embora esteja abaixo da média da UE-27 (40,5%, em 2021), trata-se do valor nacional mais elevado desde que há registo.

Caracterizando o tempo desde o início do século XXI, na obra “Crise e Castigo: Os desequilíbrios e o resgate da economia portuguesa”, Fernando Alexandre, Luís Aguiar-Conraria e Pedro Bação usam a expressão “longa estagnação”, salientando que este fraco crescimento “é o mais grave problema estrutural da economia portuguesa”.

Sem solucionar estes problemas estruturais, o país torna-se cada vez mais vulnerável a interferências e choques externos — como se verificou com a pandemia, em 2020, e a Guerra na Ucrânia, que eclodiu em 2022 e não apresenta fim à vista.

As dificuldades vividas pelos portugueses denotam-se em diversos indicadores, entre os quais o risco de pobreza e os níveis de rendimento. Apesar de a taxa de risco de pobreza — proporção de habitantes com rendimentos monetários líquidos (por adulto equivalente) inferiores a 6.608 euros (551 euros por mês) — ter recuado de 20,4%, em 2003, para 16,4%, em 2021, o impacto da pandemia nas condições de vida e no rendimento da população portuguesa foi intenso, refere o relatório “Pobreza e exclusão social em Portugal”, de 2022, do Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza.

Este estudo indica ainda que se verificou um acentuado incremento das desigualdades sociais. Aliás, Portugal apresenta-se como o Estado-membro com o maior aumento nos níveis de desigualdades de rendimento, relativamente ao inquérito anterior (não abrangendo a Eslováquia).

Observando as duas primeiras décadas do século XXI, a evolução da remuneração média por trabalhador, em termos reais, cresceu 6,8%, entre 2000 e 2010, e 3,1%, desde então. Progrediu, é certo, mas esse crescimento revela-se bem distante, por exemplo, do período entre 1990 e 2000, de 37,8%. Em 2022, a remuneração bruta total mensal média por trabalhador foi de 1 411 euros, o que representa um aumento de 3,6% em termos nominais e uma queda de 4,0% em termos reais.

À pandemia aliaram-se a inflação e a subida das taxas de juro, penalizando o rendimento familiar. Os efeitos da subida dos preços nas condições das famílias notam-se no agravamento das situações de privação material e social, como salienta Carlos Farinha, professor do ISEG, num artigo sobre a pobreza e a desigualdade.

Entre a política de causas e a política de casos, onde fica a credibilidade do sistema?

A vida dos portugueses está ainda mais difícil e os governantes não têm conseguido dar resposta aos problemas estruturais do país. O professor de Economia Abel Mateus explica que a qualidade da democracia tem falhas graves, sendo percepcionada pelos cidadãos como “deficiente”. Esta perceção estende-se das instituições ao Governo, passando pelo Parlamento e, sobretudo, pelos partidos políticos.

Os dados, efetivamente, demonstram a degradação da qualidade da nossa democracia. O “Democracy Index” da Economist Intelligence Unit reflete esse facto: em 2006 (primeiro ano de divulgação deste indicador), Portugal ocupava a 19.ª posição do ‘ranking’, com uma avaliação global de 8,16. Actualmente, segundo os dados de 2022, o nosso país desceu para o 28.º lugar, com uma pontuação de 7,95. Portugal deixou de pertencer às “democracias completas”, passando a integrar-se no grupo das “democracias com falhas”, em virtude de uma fraca cultura política, baixos níveis de participação na vida política ou problemas relativos ao funcionamento da governação.

A reconfiguração do panorama partidário e o reaparecimento do discurso de ódio

Descontentes, os portugueses apontam o dedo à classe política, que não só se revela incapaz de resolver os problemas, como vai evidenciado casos de corrupção e má gestão pública. Entre estes, surge o episódio, inédito em Portugal, da detenção de um ex-primeiro-ministro. José Sócrates foi detido a 21 de Novembro de 2014, no âmbito de uma investigação, por suspeitas de fraude fiscal qualificada, corrupção e branqueamento de capitais. Apesar de ter cumprido cerca de 10 meses de prisão preventiva, o ex-primeiro-ministro ainda não foi julgado e o processo arrasta-se, com risco de prescrição, adensando o descrédito do sistema.

Se, por um lado, a reacção dos portugueses se expressa no alheamento relativamente à participação política, com o aumento das taxas de abstenção nos atos eleitorais (passaram de 38,4%, nas eleições legislativas de 2002, para 48,6%, no mais recente ato eleitoral para a Assembleia da República), por outro, decidiram dar voz a pequenos partidos à margem da governação. Basta reparar na configuração da Assembleia da República: em 2002, apenas cinco partidos tinham assento parlamentar. Actualmente, são nove as bancadas partidárias. Perdeu-se o CDS-PP, mas ao PS, PSD, PCP e Bloco de Esquerda juntaram-se o Chega, a Iniciativa Liberal, o PAN e o Livre.

Simultaneamente, a democracia portuguesa enfrenta obstáculos semelhantes aos que proliferam na Europa e nos EUA, salienta Abel Mateus, mencionando “(…) o fenómeno do populismo (…), a polarização e o radicalismo induzidos pelas grandes plataformas digitais ou a falta de qualidade das elites da governação”.

O fenómeno do partido de extrema-direita Chega, liderado por André Ventura, revela-se um exemplo claro do populismo, alicerçado no discurso de ódio, que também atinge Portugal. Criado em 2019, em quatro anos, o partido transformou-se na terceira força política no Parlamento português, conquistando seguidores no seio de uma população que enfrenta vários desafios, não só económicos, mas também sociais, começando pela própria demografia.

Sociedade: mais velhos, mais digitais, mais tolerantes e mais vulneráveis

Os dados do Eurostat, actualizados em Fevereiro de 2023, são expressivos: a população portuguesa é aquela que, no conjunto dos 27 Estados-membros da União Europeia (UE), está a envelhecer a um ritmo mais acelerado.

Este fenómeno demográfico, fruto da redução da taxa de natalidade e do aumento da esperança média de vida, verifica-se um pouco por toda a Europa, não sendo uma novidade. Não obstante, se, em 2003, a idade mediana da população portuguesa se situava nos 38,5 anos, em 2022, o cenário tornou-se bastante diferente. Os portugueses têm, em média, 46,8 anos — idade superior à mediana dos residentes da UE (44,4 anos).

Perante estes dados, Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, considerou este tópico decisivo para o futuro: “Queremos uma Europa que recupere economicamente, queremos uma Europa que seja socialmente justa, que dê oportunidades aos mais jovens? Isso tem a ver com a demografia”, declarou.

A este quadro não é alheia a evolução da emigração jovem. Assistimos, nos últimos anos, a uma verdadeira “fuga de cérebros” do país. Em 2003, segundo dados do INE, a maioria dos emigrantes portugueses possuía o Ensino Básico (77,4%), apenas 9% tinham completado o Ensino Secundário/Superior. Segundo os Censos de 2021, o perfil da emigração portuguesa é, hoje, bastante distinto: 47,6% têm diploma do Ensino Superior.

De facto, são incontáveis os desafios que decorrem deste retrato demográfico: do significativo aumento da pressão sobre a rede de Segurança Social, ao urgente fortalecimento da capacidade de resposta do Sistema Nacional de Saúde, passando pelo combate à solidão e ao isolamento da população idosa.

Contudo, se, por um lado, Portugal se apresenta progressivamente mais envelhecido, com a paulatina redução da população em idade ativa, por outro, o tecido social e económico nacional nunca esteve tão dinâmico e aberto ao mundo. O incontornável processo de digitalização do país pode ser apontado como um dos principais responsáveis deste fenómeno.

Do nascimento do Facebook à era da inteligência artificial

Vivemos, hoje, uma fatia cada vez maior do nosso quotidiano ‘online’. A implementação do universo digital em Portugal tornou-se determinante na evolução do país, ao longo dos últimos 20 anos. Afinal, a Internet transformou radicalmente o modo como interagimos, dialogamos, trabalhamos, estudamos, acedemos a conteúdos, fazemos compras, fechamos negócios ou tomamos decisões.

De acordo com os dados do INE, em 2003 — um ano antes do aparecimento do Facebook, a rede social que revolucionou o mundo —, apenas 11,3% das micro, pequenas, médias ou grandes empresas nacionais marcavam presença ‘online’. Em 2021, eram 40,1%.

Similarmente, segundo a ANACOM, 88,2% das famílias possuíam conexão à Internet, em 2022. Esta percentagem é corroborada pela evolução, nas duas últimas décadas, do número de pessoas assinantes de um serviço de Internet, em Portugal.

Neste contexto, importa destacar o protagonismo insuperável das redes sociais no nosso quotidiano. De acordo com o estudo da Marktest Os Portugueses e as Redes Sociais, publicado em 2022, 63% da população utiliza redes sociais. Cada um destes utilizadores conta com cerca de seis contas, em diversas plataformas.

Por sua vez, a Data Reportal assegura, no relatório Digital 2023: Portugal, que os portugueses dedicam uma média de 2,25 horas por dia às redes sociais. Afirma ainda que 92,2% dos utilizadores de Internet no país possuem conta em, pelo menos, uma rede social.

Contudo, quase 20 anos após a criação do Facebook, estes espaços de interacção, omnipresentes na vida dos portugueses, assistem, também, a uma transformação radical, que deixa o futuro destes ecossistemas em aberto. Num artigo intitulado “The Future of Social Media Is a Lot Less Social”, publicado no The New York Times, defende-se:

Concomitantemente, o mundo da tecnologia digital depara-se com a eclosão de um conjunto de plataformas revolucionárias para a sociedade e a economia.

O ano de 2023 trouxe para as capas dos jornais um dos tópicos que, há 20 anos, poucas vezes surgia fora da ficção científica. No final de 2022, o aparecimento do ChatGPT, modelo de linguagem de Inteligência Artificial (IA) generativa, marcou a agenda global, pela sua surpreendente capacidade de simular, com naturalidade e fluidez, a comunicação humana.

O mundo no bolso, uma pandemia sem fronteiras e a saúde mental a sair da sombra

A conectividade que o país conquistou, nos últimos 20 anos, revelou-se determinante na navegação da crise global que abalou o início da década de 2020: a pandemia de COVID-19. Afinal, foram essas ferramentas digitais que permitiram manter o funcionamento de inúmeros sectores da vida social e económica, ainda que tenham emergido novos desafios e carências.

Por conseguinte, os confinamentos, resultantes desta pandemia, provocaram um significativo aumento das comunicações electrónicas. O recurso às tecnologias de informação abriu as portas ao teletrabalho: uma possibilidade que parece ter vindo para ficar, viabilizando, hoje, novas formas de trabalhar que favorecem o nomadismo digital e a migração para o interior.

Apesar da conexão viabilizada pelas plataformas digitais, a pandemia originou um conjunto vasto de consequências invisíveis na saúde mental da população. Perante este cenário, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) destaca o impacto do distanciamento social, do isolamento, do medo e da incerteza relativamente ao futuro e à perda de rendimentos no bem-estar dos portugueses.

Quase metade dos adultos portugueses (47%) afirma, segundo o STADA Health Report 2022, que os seus níveis de ‘stress’ pioraram com o início da pandemia. Ora, se o tema da saúde mental já tinha conquistado algum espaço, ao longo das duas últimas décadas, a pandemia converteu-o num tópico verdadeiramente incontornável.

Os números divulgados pelo SNS ajudam, também, a perceber este fenómeno:

Há 20 anos, termos como “ansiedade”, “depressão” ou “burnout”, por exemplo, surgiam com muito menos frequência no quadro social, mediático e político nacional. Hoje, a saúde mental constitui, no entanto, uma preocupação basilar na nossa vida em sociedade.

Do combate ao ‘bullying’ nas escolas à implementação de políticas laborais que permitam erradicar as situações de ‘burnout’, passando pela luta contra o assédio ou o isolamento da população idosa, múltiplos problemas associados à saúde mental têm assumido um crescente protagonismo nas prioridades político-sociais do país.

Por exemplo, a ecoansiedade — caracterizada pelos especialistas como “medo relativo às consequências nefastas da crise climática” — revela-se um transtorno com crescente incidência na população mais jovem. Afinal, a luta ecologista constitui o grande impulsionador do envolvimento político das novas gerações, que cada vez se reveem menos nos fóruns político-partidários convencionais.

Estes jovens portugueses, que tomarão conta do leme do país nas duas décadas que se avizinham, têm trazido para o debate público novos temas e novas prioridades: do combate antirracista às reivindicações igualitárias do feminismo ou da comunidade LGBTQIA+, passando pelos direitos dos animas ou pela luta pela justiça climática. Trata-se, evidentemente, de uma agenda radicalmente distinta daquela que tomava conta dos noticiários, em 2003.

Nestas duas últimas décadas, derrubámos fronteiras, mas também promessas. O país sofreu e transfigurou-se com as crises que marcaram os ciclos económicos. Porém, o futuro da economia e da política parece continuar hipotecado por problemas estruturais que se perpetuam. Os próximos 20 anos levantarão, certamente, uma série de desafios: da crise do clima à ameaça às democracias, passando pelo impacto das profundas transformações digitais que agora emergem.

Afinal, que visão tem Portugal para o futuro? Como nos iremos posicionar, neste horizonte? E daqui a duas décadas, estaremos assim tão diferentes?

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