Domingo, Abril 28, 2024

O grande desafio do cinema

Mário Augusto

Hoje a arte do cinema, dizem os “entendidos”, está a passar por uma transformação como nunca viveu. o marketing e a comunicação, esforçam-se por chamar de novo o público a uma sala de projeção. mas o desafio de reinventar essa comunicação não se compara ao que há 95 anos atrás se passou quando de um momento para o outro as estrelas começaram a falar. Foi quando se percebeu que era preciso comunicar novas formas de ver cinema, apetrechar as salas com sistemas de som e mais difícil ainda, ensinar as estrelas a falar para o microfone. Pode parecer estranho, mas nem todas, ou poucas sobreviveram a essa revolução que é hoje vista como um desafio de comunicação. no final ganhou o cliente, afinal o cinema é feito pelo entusiasmo de quem se deixa seduzir.

O que aqui proponho é uma história de como o sonoro chegou ao cinema.

Foi há 95 anos, a 27 de outubro de 1927 que estreou o filme “O Cantor de Jazz”, nesse dia Hollywood, que até aquele dia andava a torcer o nariz ao sonoro, não imaginava ainda a grande revolução que ali começava.

As fábricas de sonhos da Califórnia empregavam na altura mais de 50 mil profissionais que produziam uma boa parte dos filmes que se viam em todo o mundo.

As estrelas do mudo ganhavam milhões, mas em menos de dois anos o sonho passou a pesadelo. A maioria das vedetas desse tempo viveram o drama da mudança, muitas desapareceriam esquecidas e abandonadas pelos estúdios onde já só queriam produzir os sonoros e as estrelas falavam mal.

Os filmes sonoros, ou os “talkies”, como lhe chamavam os americanos, chegaram como um verdadeiro terramoto que arrasou com a carreira de muitos atores e atrizes pela sua dificuldade de adaptação

às novas técnicas, especialmente a incapacidade de decorarem textos e interpretá-los, algumas dessas estrelas foram logo esquecidas.

Eram os novos tempos que implicavam outro tipo de representação, menos empolgada perante a câmera; foi o caso de John Gilbert (considerado um dos maiores galãs do cinema mudo) chegou a receber das suas fãs mais de duas mil cartas por dia, ficou conhecido como grande herói romântico e amante de Greta Garbo e Marlene Dietrich. Os espectadores imaginavam-lhe uma voz completamente diferente da que realmente tinha, e o ator caiu em desgraça. Morreu ainda novo de ataque cardíaco, em 1936, alcoólico e na bancarrota.

Um notável retrato dessas vedetas abandonadas seria levado ao cinema por Billy Wilder, já em 1950, no filme “Sunset Boulevard” – O Crepúsculo dos Deuses”. Uma velha rainha do cinema mudo que protagoniza uma história bizarra de loucura e paixão, vivendo o saudosismo da glória perdida nos tempos áureos do início de Hollywood. Gloria Swanson, consagrada atriz do mudo, desenvolve neste filme, um retrato cruel, mas subtil sobre a indústria do cinema, mostrando um lado mais negro e desesperado de Hollywood.

Gloria Swanson (atriz que chegou a viver largas temporadas em Sintra, onde possuía uma casa em Almoçageme) também ela tinha quase desaparecido na transição para o sonoro. Algumas das suas palavras, ao interpretar Norma Desmond (a personagem de “O Crepúsculo dos Deuses”), eram amargas e pareciam despertar os velhos fantasmas: “Ainda sou uma grande estrela, os filmes é que ficaram pequenos. Em tempos, o cinema tinha os olhos do mundo inteiro, mas isso não lhes chegava, quiseram também ter os ouvidos. Então abriram as bocarras e começaram a falar sem parar…”.

Chaplin foi dos raros casos que conseguiu manter a popularidade, recusando por muito tempo os diálogos nas suas produções. Realizou o seu primeiro filme sonoro “O grande ditador” em 1940, já treze anos depois da estreia de “Jazz singer”. Nessa altura referiu numa entrevista: – “Podeis dizer que eu detesto o sonoro. Vem dar cabo da mais antiga arte do mundo; a arte da pantomima. Esses filmes aniquilam a grande beleza do silêncio”.

Era o silêncio das imagens que os mais fundamentalistas defendiam como: – “Uma magia poética própria do cinema. O diálogo mata a poesia” – Diziam eles.

Os estúdios, ainda tentaram recuperar algumas das suas figuras mais consagradas ao lançar uma campanha com o slogan “Oiça as estrelas a falar”. Eram cenas exibidas antes da projeção dos filmes, sequencias sonoras com as caras mais conhecidas que até então eram mudas e exageradamente expressivas na representação. Ao revelarem a voz, muitas delas surpreendiam a plateia, que reagia até com sonoras gargalhadas. Quase da noite para o dia, toda uma geração de nomes bem conhecidos do cinema seria afastada do ‘ecrã’. Poucos sobreviveram ao som, Greta Garbo, com a sua voz grave, foi uma das que conseguiu fazer a transição. Para o filme “Anna Christie” os estúdios MGM fizeram uma grande campanha com o slogan “Garbo Fala” e a sua voz convenceu o novo público.

A necessidade de Inovar

O cinema norte-americano naqueles anos 20 estava a atravessar uma crise grave. As receitas de bilheteira baixaram drasticamente, o prestígio de muitas estrelas diminuiu com grandes escândalos, e surgiram na imprensa recorrentes críticas à opulência e à extravagante vida de Hollywood.

Os estúdios, num aparente beco sem saída, perceberam que era preciso evoluir, mas os gestores dos estúdios, sempre muito conservadores, pareciam não saber como dar a volta ao problema. Essa “modernice” do som, se bem que interessante, era talvez uma moda passageira, defendiam alguns para quem o bom cinema era silencioso. Os grandes estúdios, todos – ou quase todos – recusavam a novidade tecnológica, até porque essa opção representava um investimento elevado para criar soluções técnicas adequadas ao registo e reprodução dos diálogos.

Em meados de 1926, chegou a notícia a Hollywood de que os engenheiros nos laboratórios das duas maiores empresas de eletricidade dos Estados Unidos – a Western Electric e a General Electric, tinham conseguido finalmente sincronizar som com a imagem, isto ao fim de quase dez anos de experiências e estudos.

A notícia foi pouco valorizada e as primeiras abordagens aos magnatas dos estúdios até correram mal com alguns sinais de rejeição. Apenas na “Warner Brothers.” decidiram arriscar. Um dos responsáveis viria mais tarde a confessar que só aceitaram a solução proposta porque não tinham mesmo outra alternativa. Os estúdios estavam numa situação financeira muito difícil depois de uns fracassos de público e estrelas bastante caras, um quadro de gestão tão negro que uma das hipóteses era declararem falência e fecharem portas.

Na irmandade Warner, nem todos acreditavam na importância desse passo gigante. Harry Warner votou de vencido e terá dito na reunião onde a decisão final foi tomada: “Não percebo quem poderá estar interessado em ouvir esses atores a falar”.

A ideia inicial era usar o som para passar a música, os ambientes e efeitos sonoros. A voz no início não era para registar.

Os Warner sem alternativa arriscaram com cautela e discrição. Quando foram abordados para experimentar o novo sistema, denominado “Vitaphone”, e que era a mais fiável de todas as experiências feitas até então, foi-lhes proposta a aquisição da respetiva patente. Aceitaram pagar e aproveitaram para acrescentar som a um filme que já estava em produção, “Don Juan”, com John Barrymore (bisavô de Drew Barrymore) e Mary Astor. Pelo sim, pelo não, fizeram duas versões, uma delas sem som.

Na exibição da versão sonora, a música era executada ao vivo pela orquestra do New York Philarmonic Auditorium. A 6 de agosto de 1926, no Warner Theatre de Nova Iorque, passou a existir oficialmente um filme totalmente sonoro, muito embora a música dessa vez tenha sido tocada ao vivo.

As críticas foram mornas, mas o público adorou a inovação. Jack Warner disse aos jornais da época: “A novidade do cinema sonoro não desaparecerá. O que passou foi a novidade dos filmes mudos.”

Finalmente falam!

A primeira sessão oficial do cinema sonoro decorreu a 27 de outubro de 1927. Com “O Cantor de Jazz” que confirmou que os filmes tinham conquistado o uso da palavra. Mas é curioso que essa fita, cinematograficamente banal, é mais um filme cantado do que falado. O principal intérprete, Al Jolson, era um consagrado artista de variedades. Perante o êxito popular do filme, todos os agentes do negócio já aplaudiram, perceberam finalmente que tinham à sua disposição um meio de voltar a atrair multidões às salas de cinema. Já as velhas estrelas, naturalmente assustadas com o desemprego que pairava, criaram um ódio de estimação pelo sonoro. A atriz Clara Bow, uma vez, ao perceber que havia uma grande correria dos bombeiros nos estúdios da “Universal”, gritou aos quatro ventos: “Só espero que seja o departamento de som que está a arder”.

Nos primeiros tempos a preocupação era rodar fitas em que a história permitisse uma estreia simultânea com duas versões, uma muda e outra sonora porque o aparecimento do som trouxe aos estúdios um problema com os mercados internacionais. Uma grande fatia do negócio era assegurada no mercado externo e tornava-se complicado impor aos distribuidores de outros países, onde não se falava inglês, filmes em que as plateias não perceberiam nada dos diálogos. Inicialmente, a solução encontrada por um engenheiro serviu para tentar salvar algumas das estrelas do mudo: as suas vozes eram dobradas por outros atores e atrizes com melhores dotes vocais, especialmente nas cantorias. É claro que isto provocou algum mal-estar nos “donos” das vozes, pois falavam bem, mas não encantavam ninguém, uma vez que não eram eles que apareciam na tela a brilhar, eram uma espécie de duplos de voz.

Em 1929, dois anos depois da estreia de “O Cantor de Jazz”, Hollywood produziu cerca de 500 filmes, e metade deles já eram sonoros. A “United Artists”, apesar de ser liderada pelas glórias do mudo, anunciava nessa altura que a partir de 1930 todas as suas produções seriam faladas. Há registos muito curiosos dos comentários das estrelas que se sentiram ultrapassadas como o de Mary Pickford, que terá dito: “Acrescentar som aos filmes é como pôr bâton nos lábios da Vénus de Milo”. Chaplin, sempre radical na sua relação com o sonoro, dizia: “O cinema precisa tanto de som como as sinfonias de Beethoven precisam de letras”. Mas já era irreversível, os filmes falados chegaram de vez.

Curiosamente, a nova técnica representou nos seus primórdios um indiscutível retrocesso no plano artístico, pois havia muitos problemas que decorriam das dificuldades de registo do som. O microfone passou a ser um apetrecho odiado, uma arma que eliminava os que não se adaptavam.

Baseado nas muitas histórias de bastidores e nas anedotas que se contavam com o advento do som, em 1953 Gene Kelly e Stanley Donen, realizaram um dos melhores filmes de sempre em que a dramática transição para o sonoro, é mostrada em tom de comédia musical. “Singing in the Rain – Serenata à Chuva” leva-nos a perceber entre música, sorrisos e coregrafias inesquecíveis, o quanto sofreram as deusas do mudo e o ódio que tinham às novas tecnologias, especialmente microfones.

Com o argumento de “Serenata à Chuva” percebem-se também as dificuldades de mobilidade que o novo cinema trazia. A captação do som era para os técnicos um tomento e um desafio constante. As câmeras faziam muito barulho enquanto filmavam, por isso passaram a ter que estar fechadas em cabinas estanques e insonorizadas. Todas essas condicionantes técnicas vieram atrofiar a criatividade e a adaptação demorou tempo a conseguir-se, os novos equipamentos, só chegariam anos depois para aligeirar todo o processo de filmagem.

Os estúdios eram fábricas de sonhos cada vez mais caros de produzir e com uma boa dose de risco.

Foi a maior e mais radical revolução na indústria do cinema. Inventaram-se novas estrelas, repensou-se o sonho que ainda hoje continua a evoluir sempre fiel ao princípio de contar uma história que emociona, diverte e nos toca e encanta.

O último filme da época do mudo produzido nos EUA estreou a 7 de abril de 1930 e intitulava-se “O Pobre Milionário”. É claro que foi um fracasso de bilheteira, mas ficou na história por ser a fita que marcou o definitivo virar de página.

Afinal onde se experimentou o sonoro

Em França onde o cinema começou, que desde essa primeira apresentação do Cinematógrafo dos Lumière em 1894, que se foram testando diversas formas de registo do som sincronizado com imagens.

Há referências a um tal Lengaste Baron que patenteou em Paris um sistema de aparelhos que permitia registar e reproduzir simultaneamente imagens e som. Baron ainda produziu várias fitas, mas, desiludido com a falta investidores para a sua ideia, acabou por desistir.

Há uma outra tentativa de patentear, já em 1905, outro equipamento com um longo, mas sugestivo nome: “O registo elétrico de som sobre a película do mesmo filme”. Os inventores acabaram por desistir da ideia, mas foi pena, porque eles estavam no bom caminho… quando muito, adiantados no tempo, porque, 22 anos depois, foi esse mesmo princípio que os engenheiros americanos da “Western Electric” seguiriam para encontrar a solução que finalmente iria sincronizar som e imagem.

Já em 1900, fez furor na Exposição Universal de Paris o “Phono-Cinéma-Théâtre”, pequenos filmes onde se viam e ouviam cantar as grandes estrelas da época dos espetáculos de Paris como Sarah Bernhardt.

Com mais ou menos sincronismo, juntava-se ao projetor um fonógrafo (bisavô do gira-discos). Em França, com essa mesma técnica, foram produzidas diversas sequências de filme em que os cantores da época ficaram registados para sempre. Uns telediscos à moda antiga…

No Verão de 1908, Leon Gaumont alugou um cinema em Paris, e durante várias semanas projetou, com enorme êxito, o seu cinema sonoro com recurso ao Cronógrafo. Gaumont ainda registou a técnica, mas como comercialmente não obteve o retorno que esperava acabou por desistir.

Experiências francesas que anteciparam muito o cinema sonoro, mas a primeira guerra interrompeu sem recuperação essa evolução tecnológica.

Hoje a evolução do cinema é tão complexa que não se pensa sequer na falta que pode fazer, um ruído, um diálogo num filme. O que hoje se discute é a pureza do som numa imagem, criam-se envolventes sonoras que está para lá do entendimento perceção do sono aparelho auditivo. Quando se fala do registo sonoro de um filme, ouvimos siglas e marcas que nos despertam imagens só de ouvir, THX, DTS, Atmos, Dolby, são mais do que siglas, são a porta sonora para o nosso envolvimento com as imagens. Há 95 anos o desafio técnico e de marketing de comunicação era tão simplesmente pô-los a falar, coisa muito difícil para aquele tempo. 

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

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