Raquel Vaz Pinto, Investigadora IPRI-Univ. NOVA
Nos últimos meses, o Afeganistão tem estado no centro das atenções mediáticas internacionais. Uma vez mais pelo que parece ser a triste sina deste povo. Na verdade, quando pensamos nas décadas mais recentes a atenção mediática e das grandes potências parece ser a de uma montanha-russa (sem ironia). Nos anos oitenta, a invasão de Moscovo (na verdade no final do ano de 1979) levou os EUA a apoiar todos os opositores; nos anos noventa todos se esqueceram deste território até que, em 2001, o Afeganistão voltou a ser notícia e foi objecto de uma intervenção internacional que terminou … duas décadas depois. Em matéria de combate os afegãos têm de facto uma história invejável. Entre outros, podemos destacar os romanos, os persas, Babur e o início do Império Mogol, a sua independência em 1747 e, de forma mais marcante, a resistência a duas invasões e ocupações do Império Britânico no século XIX que fazem justiça ao seu cognome internacional: “cemitério de impérios”.
Voltando a 2021 observámos uma vez uma retirada que só pode ser caracterizada como incompetente e trágica (para ser suave). Por entre as muitas histórias pessoais, os dilemas daqueles que acreditaram numa vida melhor e que sabem perfeitamente o que significa o regresso dos Talibãs, qual é o Império que se segue? Já não é de agora o interesse da República Popular da China no território afegão. Se analisarmos com atenção percebemos que há capacidade e vontade de desempenhar um papel importante neste país. No entanto, o alinhamento de interesses entre Beijing e Cabul parece, à partida, estranho, senão mesmo impossível: de um lado, temos um governo de cariz religioso zelota e, do outro lado, um país que se assume de forma militante como ateu e que tem campos de concentração de uigures muçulmanos na região chinesa de Xinjiang. Esta divergência parece afastar à partida estes dois pólos.
No entanto, há uma convergência de interesses internos e externos que ajuda a compreender a fase muito positiva das relações entre a China e Afeganistão. Em primeiro lugar, a saída internacional e, em particular, dos EUA é algo que une Cabul e Beijing para além da fronteira comum. Em segundo lugar, há necessidade de investimento e de recursos financeiros que a China pode providenciar e o Afeganistão agradece e que pagará com os seus recursos. Para Beijing é mais uma peça importante no enquadramento e na envolvência da estratégia da Nova Rota da Seda. Em terceiro lugar, o contexto regional é importante, mas por razões diferentes. Ao tentar ser influente em território afegão a China desfere mais um golpe na vizinhança da Índia, ou seja, é mais um país no qual a China parece ter mais preponderância. A rivalidade entre a China e a Índia, bem patente por exemplo nos conflitos na sua fronteira e que resultaram em baixas para os dois lados em 2020, é uma das dimensões mais importantes em toda a região. Para os Talibãs o retraimento da Índia a favor do Paquistão é um resultado bem acolhido. E, por último, estamos a falar de dois países que são ditaduras e que não têm qualquer dilema em matéria de direitos humanos. Mais ainda, no caso da China estamos a falar de uma ditadura com direito de veto no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.
No entanto, como a História bem nos ensina é preciso prudência e cautela face ao que se considera influência ou poder externos no Afeganistão. Essa é uma lição bem custosa que muitos tiveram que digerir. Em suma, é bom não descartar a capacidade afegã de resistir e de ludibriar aqueles que pensam que finalmente domaram o “cemitério de impérios”.