Bruno Cardoso Reis, Sub-director do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL
Aparentemente pouco. Está longe: A distância de Lisboa a Cabul é c.7000 km. Porém, Nova Iorque e Washington D.C. estão ainda mais distantes do Afeganistão. Isso não impediu que tivessem sido alvo de um ataque, a 11 de setembro de 2001, que vitimou mais de 2900 pessoas, planeado e coordenado pela al-Qaida a partir do santuário que os talibãs lhe ofereciam no território afegão. O recrudescimento do terrorismo é um dos riscos a que devemos estar atentos com o regresso dos talibãs ao poder. É bem possível que eles não possam ou não queiram evitar que o país seja novamente transformado num santuário terrorista. Um território seguro permite aos terroristas crescer e organizar ataques mais perigosos, como vimos com o Daesh depois da retirada dos EUA do Iraque. Há ainda o risco do uso propagandístico da retirada precipitada dos EUA e aliados para alimentar o recrutamento de grupos semelhantes do Sahel até Moçambique. E sabemos que os ocidentais são alvos preferenciais do jihadismo transnacional. É verdade que não houve ataques terroristas recentes no território português. Mas a complacência é perigosa a este respeito. E tal não quer dizer que não tenham já feito vítimas portuguesas. Por exemplo, nos ataques do 11 de setembro de 2001, houve 9 mortos portugueses ou luso-descendentes.
Ou seja, o Afeganistão – historicamente um tampão e tabuleiro no choque de grandes potências na Ásia – pode dar-nos pistas importantes sobre a evolução da geopolítica global. Desde logo, a retirada dos EUA do Afeganistão confirma e reforça uma tendência de retraimento estratégico norte-americano. Apesar das diferenças entre sucessivos presidentes, esta tendência vem de Obama, e reforçou-se com Trump e com Biden. Os EUA poderiam ter mantido, com custo limitado, algumas tropas para sustentar um governo afegão amigável. Poderiam ter ficado um pouco mais de tempo para facilitar uma transição mais ordeira e uma evacuação mais fácil. Não o quiseram fazer. Isto corresponde a uma postura externa mais nacionalista e protecionista, de menor investimento no exterior.
É verdade que o retraimento dos EUA em várias regiões do Mundo é justificado com o chamado ‘pivot’ ou reequilíbrio no sentido do reforço de uma presença norte-americana no chamado Indo-Pacífico. (Um resultado concreto, em Portugal, desta mudança de postura dos EUA tem sido o desinvestimento na Base das Lages – embora a este respeito haja também outros fatores.) É certo que, nas palavras de Biden e dos seus conselheiros, deixando de estar “presos” ao Afeganistão, os EUA terão mais meios para serem usados noutras paragens mais prioritárias. Mas isso também significa que abdicaram de contar com uma presença militar forte no coração da Ásia Central e num país que faz fronteira com a China. Admito que a presença no Afeganistão fosse pouco interessante – pela força militar dos talibãs e pelas claras fragilidades do governo afegão. Mas do meu ponto de visto é um erro os EUA pensarem que a contenção da ascensão global da China pode ser feita apenas no Mar do Sul da China ou no Extremo Oriente.
O novo líder chinês Xi Jinping não deixa dúvidas quanto às ambições globais da China, aliás, naturais, tendo em conta a história e a dimensão deste velho império disfarçado de Estado-nação. O investimento em portos e outras infraestruturas, conhecido como “Belt and Road” é uma manifestação concreta e bilionária disso mesmo. Outra é o enorme crescimento da marinha chinesa, que já alcançou a norte-americana, pelo menos em quantidade.
Um dos países prioritários nesta estratégia global chinesa tem sido o Paquistão. O que permitiu a este último país desafiar os EUA, seu tradicional protetor durante a Guerra Fria, nomeadamente no apoio aos talibãs afegãos. O território paquistanês permite, efetivamente, ligar o Extremo Ocidente chinês ao Oceano Índico. Isso permitirá à China, aos seus meios navais – comerciais e militares –, ter uma presença mais forte no Índico, sem precisar de passar pelo estreio de Malaca, que pode ser facilmente bloqueado. Claro, desde que o novo Afeganistão não desestabilize a região.
Os EUA têm enfrentado sérias crises económicas e políticas, mais difíceis de gerir por virtude de uma hiperpolarização política identitária. Estas distrações internas tendem a limitar os compromissos externos de qualquer potência. Será bom que, apesar disso, os EUA se lembrem que precisam da Europa mais do que nunca. Nunca os EUA enfrentaram uma potência hostil que representasse mais do que 60% do seu PIB – esse era o valor somado do PIB da Alemanha Nazi e do Japão, em 1941, ou da URSS. Já a China está perto de atingir paridade económica com os EUA e tem a escala para os ultrapassar. Os EUA precisam mais do que nunca da Europa para reequilibrar a balança global, e não encontrarão aliados mais semelhantes em nível de desenvolvimento, riqueza, valores ou interesses.
O que é claro é que, todos nós, devemos preparar-nos para um período mais conflituoso e mais incerto da vida internacional. Diz-nos a história que a ascensão de uma nova grande potência raramente é pacífica.
(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)