Quarta-feira, Maio 8, 2024

A Educação é um investimento contraciclo

Ana Rita Bessa, Deputada do CDS-PP

Há 17 anos, numa “outra” Revista Prémio, fui nomeada como um dos “80 líderes empresariais com futuro”.

O desígnio foi excessivo, mas a nomeação explicar-se-ia por um conjunto de fatores: uma família que acredita no trabalho e mérito – e que acreditou em mim –, uma boa escola, uma boa universidade, empregos reputáveis e por isso, uma expectativa elevada.

Destes fatores, vários não foram escolhas, mas antes dados da minha vida – e creio partilhar este contexto com muitos leitores “desta” Revista Prémio.

Só que estes não são os pontos de partida da maioria das pessoas. Ainda assim, numa sociedade democrática e madura não deveria ser possível a todos aspirar a um horizonte de melhoria? Estaremos a fazer para que assim seja? Estas são questões que me inquietam e que, de alguma forma, me trouxeram ao exercício da Política.

A verdade é que há uma reprodução intergeracional da pobreza. Em Portugal a pobreza herda-se e, desde cedo, não estamos a recuperar equidade.

A taxa de pobreza infantil é persistentemente mais elevada do que a taxa global

Um estudo recente¹ demonstrou a natureza estrutural do fenómeno da pobreza, identificando que as pessoas que crescem num contexto de privação vêem limitadas as suas oportunidades futuras.

De entre estes, os agregados com crianças são aqueles em que a taxa e pobreza é mais elevada, especialmente em famílias monoparentais ou com três ou mais crianças.

Os dados disponibilizados pelo INE² mostram que, em 2019, de entre as crianças com menos de 12 anos:

– Cerca de 25,8% vivem numa casa em que o telhado deixa passar água, as paredes e o chão têm infiltrações graves;

– Quase 13% não tem a casa adequadamente aquecida e 9,2% não tem luz suficiente;

– 15,5% vivem em alojamentos sobrelotados;

– 6,5% vivem em ambientes de crime ou violência e quase 13% em sítios com sujidade ou problemas ambientais;

– 9% não fazem refeições completas e saudáveis e 3% sentem fome e não comem porque as famílias não têm dinheiro.

A educação deveria quebrar os ciclos de pobreza

Há vários estudos³ que mostram que a escola não está a anular as desigualdades de partida e, em alguns casos, permite até que aumente o fosso entre alunos – presente e futuro. Destaco alguns dados:

– O número de alunos no ensino básico com 2 ou 3 anos de desvio face ao ano escolar adequado é elevado e cresce longitudinalmente, ou seja, o insucesso vai-se acumulando;

– Dos alunos que frequentam o ensino secundário regular, 73% estão na idade ideal de frequência deste nível de ensino, mas no caso dos cursos profissionais essa percentagem cai para 28,3%;

– A maior percentagem de alunos que beneficia de Acção Social Escolar frequenta percursos alternativos entre o 5º e o 9º ano e cursos profissionais no ensino secundário, o que indicia uma correlação entre contextos socioeconómicos desfavorecidos e insucesso escolar;

– A diferença de desempenho no PISA entre alunos afluentes e desfavorecidos é de 95 pontos – a média portuguesa é de 492 pontos;

– Dos alunos provenientes de contextos desfavorecidos, independentemente do seu ‘score’, 40% não se permite aspirar a frequentar o ensino superior – o que acontece apenas com 7% dos outros alunos.

Dito de forma clara: o sistema educativo não está a vencer o determinismo social.

E será razoável admitir que tudo isto se agravou com a crise pandémica, porque as desigualdades no acesso e produtividade do ensino a distância pesaram mais sobre quem menos tinha.

Mudar para que tudo não fique na mesma

A verdade é que há investimento na escola, mas há desinvestimento nas crianças. São muitas as histórias contadas por quem anda no terreno, como a do:

– “João”, com 16 anos ainda está no 6º ano. Com o pai desaparecido e a mãe encarcerada, vive com a avó, doente e sem a literacia que viabilizasse a comunicação por plataformas informáticas. Ao fim de 1 mês de aulas ‘online’, já o “João” tinha chumbado por faltas;

– “Maria”, aluna de etnia cigana, que viu negado o vale para compra de livros escolares porque a professora achou que “não valia a pena”;

– “Pedro”, com mutismo seletivo, não falou desde o início do ano letivo, porque na primária os professores falavam de forma muito agressiva e ele só sabia ficar calado no seu silêncio. A isto ao Diretor de Turma respondeu “eu não posso mudar a minha maneira de falar!”.

Não são alunos fáceis. São mesmo muito difíceis. Por isso estão em turmas “guetizadas”, replicando os bairros em que vivem. Muitos crescem sinalizados pelas autoridades e rapidamente descobrem que podem ser os heróis-anti-heróis, reincidindo na delinquência. A justiça é inimiga tal como a escola é inimiga.

Só, talvez, se alguém acreditar que o João, ou a Maria ou o Pedro, podem ter uma história diferente, isso venha a acontecer. Se as escolas puderem contratar os professores certos para estes alunos, se as comunidades – incluindo o poder local – forem envolvidas no desenho de soluções locais e duradouras, em vez de “projetos” sem continuidade, se os alunos forem ouvidos e as suas crenças, mal assimiladas, forem desafiadas e reordenadas.

Acredito profundamente que a Educação é o meio para a equidade que permitirá que, um dia, um João, uma Maria ou um Pedro sejam não só nomeados como efetivamente se tornem num dos “80 líderes do futuro”. 


¹
“POBREZA EM PORTUGAL – TRAJETOS E QUOTIDIANOS”, FUNDAÇÃO FRANCISCO MANUEL DOS SANTOS.

² INQUÉRITO ÀS CONDIÇÕES DE VIDA E DO RENDIMENTO (ICOR) IN “CRIANÇAS EM PORTUGAL E ENSINO A DISTÂNCIA: UM RETRATO”
(MARIANA ESTEVES PEDRO FREITAS; MIGUEL HERDADE; BRUNO P. CARVALHO; SUSANA PERALTA).

³ IN “THE STATE OF EDUCATION 2019” FROM THE NATIONAL COUNCIL OF EDUCATION AND THE “NACIONAL PISA REPORT 2018”, IAVE/OECD.

REAL CASES AS TOLD BY MENTORS ON THE “TEACH FOR PORTUGAL”

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

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