Paulo Macedo, CEO Caixa Geral de Depósitos
Segundo a mitologia grega, Sísifo foi o fundador e o primeiro rei de Corinto. Tendo enfrentado os deuses, desobedecendo-lhes, foi condenado a, para todo o sempre, empurrar uma pedra até ao cimo de um monte. Ao chegar ao topo, a pedra rolava encosta abaixo. Sísifo tinha de recomeçar tudo. Uma vez e outra. Até à eternidade.
Sem termos desobedecido aos deuses, estamos um pouco como Sísifo. Empurrando a pedra montanha acima e recomeçando uma vez e outra. No nosso caso, economistas e gestores, não é também um castigo… A permanente reconstrução da realidade faz parte das nossas tarefas. Como não podemos permanecer estáticos num mundo em velocidade crescente de mudança, temos de, a cada momento, reavaliar a realidade e reconstruir os percursos.
Poderíamos nós, há um ano e meio, prever o que iria acontecer de seguida?
• Economia portuguesa e mundial afetada pela pandemia, que levou o país à maior recessão deste século.
• Quebra de consumo, de utilização de meios de pagamento e consequente redução de comissionamento bancário.
• Aumento da poupança em Portugal e no resto da Europa, com subida significativa de depósitos.
• Liquidez abundante.
• Redução de taxas de juro para novos mínimos históricos, com custo marginal de depósitos 50bp negativos para os bancos.
• Novo aumento da concorrência no setor bancário, por volumes de crédito, para manter margem financeira, em face da queda das taxas de juro.
• Procura de crédito, direcionada para linhas garantidas do Estado, quebra no investimento (exceto construção).
Face a este contexto os desafios para o setor bancário decorrentes da crise pandémica são enormes, resultando num aumento direto do risco de crédito e ainda de menor rentabilidade (o retorno dos capitais próprios da banca há mais de uma década que é inferior aos respetivos custos). A estes juntam-se os desafios estruturais (regulação, rentabilidade, reinvenção, reputação e reconstrução), traduzidos em fatores como os critérios ambientais na concessão de crédito ou a tendência crescente para a digitalização dos serviços financeiros e a inovação tecnológica.
Neste contexto importa reafirmar as respostas que temos vindo a dar:
1) Proteger os clientes e os colaboradores em face da pandemia;
2) Adaptar e assegurar a 100% a capacidade de resposta em confinamento, com alterações substanciais no modo de funcionamento;
3) Responder às necessidades das famílias e empresas no âmbito das necessidades de resposta à crise (crédito com linhas garantidas, moratórias, meios de pagamento contactless, reforço de canais digitais; …);
4) Reforço dos meios de controlo interno;
5) Criar, adquirir, desenvolver e mobilizar recursos e competências, recrutando mais talento e premiando melhor o mérito;
6) Diminuir o risco do Banco, simplificando a sua estrutura e os seus processos;
7) Modernizar e digitalizar o negócio;
8) Temos monitorizado os clientes em moratórias e estamos a avaliar com eles as suas necessidades quando as moratórias terminarem.
Em 2020, continuámos a liderar o mercado português em termos de número de clientes, número de clientes digitais, com um aumento expressivo do reconhecimento enquanto melhor banco digital.
Temos mais de 2,250 milhões de clientes digitais ativos no Grupo CGD. Conseguimos, com o esforço de uma vasta equipa, ter o primeiro ‘Contact Center’ bancário 100% em teletrabalho em Portugal. Assegurámos a resposta adequada sem interrupção no apoio diário às famílias e empresas num contexto de COVID e conseguimos enfrentar com sucesso um crescimento de interações com clientes no ‘Contact Center’ de mais de 35%.
Estamos aqui no oposto de Sísifo. Se os fatores exógenos nos podem levar a refazer o caminho uma vez e outra, no que depender de dados endógenos queremos que os marcos fiquem no alto do cume e que não voltemos a cair numa situação difícil.
Duas questões se impõem neste momento. Como podemos enfrentar os desafios de crédito e do final das moratórias? Que necessidades de capitalização terão os bancos a prazo?
A pandemia constituirá, acima de tudo, um teste de resiliência às empresas em primeiro lugar e depois ao setor de banca, em Portugal, tal como em outros países. O setor financeiro está hoje mais resiliente que em 2007. Tem melhores rácios de capital e menos créditos problemáticos nos últimos 10 anos. Temos uma diminuição substancial do rácio de transformação, reforço dos níveis de capitalização, em que o rácio de capital (Tier1) aumentou consideravelmente (para o dobro ou triplo face ao início da última crise).
O risco de crédito e solvabilidade são dos riscos que vão requer novamente maior atenção dos bancos em Portugal, com foco na capacidade de conceder crédito com risco adequado (que não leve a sociedade a perguntar na próxima crise, porque se deram aqueles créditos).
O rácio de incumprimento (NPL) na Caixa evoluiu de 15,8% para 3,9%, entre 2016 e 2020.
Entre tantas dificuldades, não nos limitamos a levar o fardo até ao cimo do monte. Contamos com a realidade da Caixa, que orgulhosamente transformamos, reafirmando a sua identidade, e que esteve na base da forma como ultrapassámos os obstáculos ao longo do último ano. A nossa liderança no segmento digital permitiu que estivéssemos à distância e, ao mesmo tempo, muito perto dos nossos clientes. Conseguimos ter os nossos trabalhadores num permanente apoio às famílias e às empresas e à economia, mantendo uma gestão personalizada.
Ou seja, confirmámos, que o futuro está ao virar da esquina. Seguiremos em frente, e para cima, como Sísifo. Com a intenção firme de não deixar rolar a rocha pela montanha abaixo. Se depender de nós, tal não deverá suceder.
Somos todos Sísifo? Sim, um pouco. Mas com foco, determinação, sem castigo e com propósito.
(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)