Sexta-feira, Abril 26, 2024

Sísifo, a banca, a gestão e a pandemia

Paulo Macedo, CEO Caixa Geral de Depósitos

Segundo a mitologia grega, Sísifo foi o fundador e o primeiro rei de Corinto. Tendo enfrentado os deuses, desobedecendo-lhes, foi condenado a, para todo o sempre, empurrar uma pedra até ao cimo de um monte. Ao chegar ao topo, a pedra rolava encosta abaixo. Sísifo tinha de recomeçar tudo. Uma vez e outra. Até à eternidade.

Sem termos desobedecido aos deuses, estamos um pouco como Sísifo. Empurrando a pedra montanha acima e recomeçando uma vez e outra. No nosso caso, economistas e gestores, não é também um castigo… A permanente reconstrução da realidade faz parte das nossas tarefas. Como não podemos permanecer estáticos num mundo em velocidade crescente de mudança, temos de, a cada momento, reavaliar a realidade e reconstruir os percursos.

Poderíamos nós, há um ano e meio, prever o que iria acontecer de seguida?

• Economia portuguesa e mundial afetada pela pandemia, que levou o país à maior recessão deste século.

• Quebra de consumo, de utilização de meios de pagamento e consequente redução de comissionamento bancário.

• Aumento da poupança em Portugal e no resto da Europa, com subida significativa de depósitos.

• Liquidez abundante.

• Redução de taxas de juro para novos mínimos históricos, com custo marginal de depósitos 50bp negativos para os bancos.

• Novo aumento da concorrência no setor bancário, por volumes de crédito, para manter margem financeira, em face da queda das taxas de juro.

• Procura de crédito, direcionada para linhas garantidas do Estado, quebra no investimento (exceto construção).

Face a este contexto os desafios para o setor bancário decorrentes da crise pandémica são enormes, resultando num aumento direto do risco de crédito e ainda de menor rentabilidade (o retorno dos capitais próprios da banca há mais de uma década que é inferior aos respetivos custos). A estes juntam-se os desafios estruturais (regulação, rentabilidade, reinvenção, reputação e reconstrução), traduzidos em fatores como os critérios ambientais na concessão de crédito ou a tendência crescente para a digitalização dos serviços financeiros e a inovação tecnológica.

Neste contexto importa reafirmar as respostas que temos vindo a dar:

1) Proteger os clientes e os colaboradores em face da pandemia;

2) Adaptar e assegurar a 100% a capacidade de resposta em confinamento, com alterações substanciais no modo de funcionamento;

3) Responder às necessidades das famílias e empresas no âmbito das necessidades de resposta à crise (crédito com linhas garantidas, moratórias, meios de pagamento contactless, reforço de canais digitais; …);

4) Reforço dos meios de controlo interno;

5) Criar, adquirir, desenvolver e mobilizar recursos e competências, recrutando mais talento e premiando melhor o mérito;

6) Diminuir o risco do Banco, simplificando a sua estrutura e os seus processos;

7) Modernizar e digitalizar o negócio;

8) Temos monitorizado os clientes em moratórias e estamos a avaliar com eles as suas necessidades quando as moratórias terminarem.

Em 2020, continuámos a liderar o mercado português em termos de número de clientes, número de clientes digitais, com um aumento expressivo do reconhecimento enquanto melhor banco digital.

Temos mais de 2,250 milhões de clientes digitais ativos no Grupo CGD. Conseguimos, com o esforço de uma vasta equipa, ter o primeiro ‘Contact Center’ bancário 100% em teletrabalho em Portugal. Assegurámos a resposta adequada sem interrupção no apoio diário às famílias e empresas num contexto de COVID e conseguimos enfrentar com sucesso um crescimento de interações com clientes no ‘Contact Center’ de mais de 35%.

Estamos aqui no oposto de Sísifo. Se os fatores exógenos nos podem levar a refazer o caminho uma vez e outra, no que depender de dados endógenos queremos que os marcos fiquem no alto do cume e que não voltemos a cair numa situação difícil.

Duas questões se impõem neste momento. Como podemos enfrentar os desafios de crédito e do final das moratórias? Que necessidades de capitalização terão os bancos a prazo?

A pandemia constituirá, acima de tudo, um teste de resiliência às empresas em primeiro lugar e depois ao setor de banca, em Portugal, tal como em outros países. O setor financeiro está hoje mais resiliente que em 2007. Tem melhores rácios de capital e menos créditos problemáticos nos últimos 10 anos. Temos uma diminuição substancial do rácio de transformação, reforço dos níveis de capitalização, em que o rácio de capital (Tier1) aumentou consideravelmente (para o dobro ou triplo face ao início da última crise).

O risco de crédito e solvabilidade são dos riscos que vão requer novamente maior atenção dos bancos em Portugal, com foco na capacidade de conceder crédito com risco adequado (que não leve a sociedade a perguntar na próxima crise, porque se deram aqueles créditos).

O rácio de incumprimento (NPL) na Caixa evoluiu de 15,8% para 3,9%, entre 2016 e 2020.

Entre tantas dificuldades, não nos limitamos a levar o fardo até ao cimo do monte. Contamos com a realidade da Caixa, que orgulhosamente transformamos, reafirmando a sua identidade, e que esteve na base da forma como ultrapassámos os obstáculos ao longo do último ano. A nossa liderança no segmento digital permitiu que estivéssemos à distância e, ao mesmo tempo, muito perto dos nossos clientes. Conseguimos ter os nossos trabalhadores num permanente apoio às famílias e às empresas e à economia, mantendo uma gestão personalizada.

Ou seja, confirmámos, que o futuro está ao virar da esquina. Seguiremos em frente, e para cima, como Sísifo. Com a intenção firme de não deixar rolar a rocha pela montanha abaixo. Se depender de nós, tal não deverá suceder.

Somos todos Sísifo? Sim, um pouco. Mas com foco, determinação, sem castigo e com propósito.

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

Partilhe este artigo:

- Advertisement -
- Advertisement -

Artigos recentes | Recent articles

Um país na flor da idade

Nos últimos 20 anos Angola sofreu inúmeras transformações, desde a mais simples até à mais complexa. Realizou quatro eleições legislativas, participou pela primeira vez numa fase final de um campeonato do mundo, realizou o CAN e colocou um satélite em órbita.

David Cameron

David Cameron foi Primeiro-Ministro do Reino Unido entre 2010 e 2016, liderando o primeiro Governo de coligação britânico em quase 70 anos e, nas eleições gerais de 2015, formando o primeiro Governo de maioria conservadora no Reino Unido em mais de duas décadas.

Cameron chegou ao poder em 2010, num momento de crise económica e com um desafio fiscal sem precedentes. Sob a sua liderança, a economia do Reino Unido transformou-se. O défice foi reduzido em mais de dois terços, foram criadas um milhão de empresas e um número recorde de postos de trabalho, tornando-se a Grã-Bretanha a economia avançada com o crescimento mais rápido do mundo.

Conferências com chancela CV&A

Ao longo de duas décadas, a CV&A tem vindo a promover conferências de relevo e interesse nacional, com a presença de diversos ex-chefes de Estado e de Governo e dirigentes políticos de influência mundial.

As idas e vindas da economia brasileira nos últimos 20 anos

Há 20 anos, o Brasil tinha pela primeira vez um presidente alinhado aos ideais da esquerda. Luiz Inácio Lula da Silva chegava ao poder como representante máximo do Partido dos Trabalhadores (PT).

Uma evolução notável e potencial ainda por concretizar

Moçambique há 20 anos, em 2003, era um país bem diferente do de hoje. A população pouco passava dos 19 milhões, hoje situa-se em 34 milhões, o que corresponde a um aumento relativo de praticamente 79%, uma explosão que, a manter-se esta tendência será, sem dúvida, um factor muito relevante a ter em consideração neste país.

O mundo por maus caminhos

Uma nova ordem geopolítica e económica está a ser escrita com a emergência da China como superpotência económica, militar e diplomática, ameaçando o estatuto dos EUA. Caminhamos para um mundo multipolar em que a busca pela autonomia estratégica está a alterar, para pior, as dinâmicas do comércio internacional. Nada será mais determinante para o destino do mundo nos próximos anos do que relação entre Pequim e Washington. A Europa arrisca-se a ser um mero espetador.

Mais na Prémio

More at Prémio

- Advertisement -