Quarta-feira, Maio 8, 2024

Na era da desinformação

Nicolau Santos, Presidente do Conselho de Administração da RTP

Portugal tem um problema de literacia. Política, cultural, social, financeira, mediática. É um problema que paradoxalmente se aprofundou quarenta e sete anos depois de 1974, apesar de nesse período se ter verificado uma descida notável da taxa de analfabetismo (25,7% em 1970, 5,2% em 2011, Pordata) e vivermos diariamente confrontados com uma overdose de informação, que nos chega pelas mais diferentes vias, com as redes sociais à cabeça. Segundo uma estimativa da Intelligence Unit da revista Economist, hoje em dia cerca de 60% das pessoas que vivem no planeta, à volta de 4,2 mil milhões de cidadãos, já só procura informação de todo o tipo através das redes sociais. É pois suposto concordarmos com a afirmação de que vivemos na Era da Informação. Contudo, com a explosão brutal das notícias falsas divulgadas pelas mais diferentes plataformas telemáticas, o que se pode afirmar seguramente é que o mundo vive na Era da Desinformação. E o combate à desinformação, que mina os pilares das sociedades democráticas, passa pelos grupos públicos de media, os públicos em primeiro lugar. São eles que estão em melhores condições para travar esse combate pelo facto de, ao contrário dos órgãos privados, não dependerem exclusivamente das receitas dos mercados para sobreviverem e das pressões sobre as linhas editoriais que daí podem decorrer.

A literacia mediática caracteriza-se pela capacidade de compreensão dos utilizadores quer da informação que consomem, quer da que produzem e que divulgam. Torna os cidadãos mais conscientes, mais capazes de discernir e decidir por si próprios, ficando menos sujeitos à desinformação e à manipulação da informação, mais aptos a intervirem civicamente e a participarem ativamente na vida política, económica, social e cultural da sociedade. Nesta matéria, Portugal tem vindo a progredir. O Media Literacy Index, que avalia a literacia mediática em 35 países europeus, colocava Portugal em 2018 no 15º lugar com 59 pontos em 100. Contudo, em 2019, o país subiu para o 11º lugar com 62 pontos, estando atrás de nós o Reino Unido, Áustria, França, Espanha e Itália, além de todos os países do leste, com exceção da Estónia. Não é seguro, contudo, que não possa existir uma regressão nesta matéria, pelo que se devem desenvolver todas as ações possíveis para aumentar a literacia mediática no país.

Por isso, o que posso escrever para lhe dizer a si, estimado leitor, para o fazer acreditar quão importante é aumentar a sua literacia mediática, tornando-o mais capaz de separar o trigo do joio e de discernir o que é verdadeiro do que é falso? Provavelmente nada. Está com toda a certeza atulhado em informações que lhe chegam pelas mais diversas vias, das tradicionais às redes sociais. Vê televisão, houve rádio, lê jornais, recebe o ‘clipping’ que todos os dias lhe entregam com notícias sobre a sua empresa, sobre a evolução dos mercados, sobre a concorrência, sobre novos produtos e tendências. Basicamente, o seu problema não é falta de informação. É informação a mais. E receia que ou não a consiga processar totalmente, deixando escapar algo vital, ou que se afogue nesse “tsunami” informativo diário, perdendo o foco que o deve orientar nas suas decisões.

Está, portanto, claro para si que vivemos na Idade da Informação, uma Era em que todos somos produtores de informação, todos temos acesso às redes sociais, que se tem multiplicado velozmente nos últimos dez anos, ao mesmo tempo que se segmentam por públicos (os mais jovens estão agora no TikTok, os mais velhos acantonaram-se no Facebook, o Instagram recolhe pessoas de todas as idades, o Twitter é agora uma poderosa arma no combate político, etc).

Segundo um estudo da Unit Intelligence da revista The Economist é provável que 60% das pessoas em todo o mundo (4,2 mil milhões de seres humanos) se informem já hoje somente através das redes sociais. E esta é uma tendência imparável, por muito que possamos não gostar dela. Ora quando pela primeira vez na história da Humanidade há tanta gente em tantas partes do mundo dependentes de algumas plataformas digitais, a tentação de manipular o pensamento, os desejos e os gostos dessas pessoas é seguramente avassaladora, tanto mais que isso pode render a presidência ou o governo de países ou fazer com que algumas entidades lucrem milhões e milhões com a utilização do algoritmo certo. Não preciso seguramente recordar-lhe as suspeitas de manipulação no referendo sobre o Brexit ou nas eleições norte-americanas em que estiveram frente-afrente Donald Trump e Hillary Clinton.

Dirá o leitor: sim, e o que tenho a ver com isso? A informação que tenho chega-me e sobra-me para a minha vida. O problema, caro leitor, é que nas redes sociais a mercadoria que se transaciona é só uma e apenas uma: você e milhares de milhões de pessoas como você. O que as redes sociais pretendem e conseguem é saber o que faz, o que come, o que veste, os seus gostos, a que restaurantes vai, que viagens faz, se vive na cidade ou no campo, se vota à esquerda ou à direita – porque isso vale montanhas de dinheiro. Com base nisso, você pode ser condicionado pouco a pouco, subliminarmente dirigido, inconscientemente orientado para fazer isto ou aquilo ou tomar esta ou aquela decisão. Nada que George Orwell não tivesse previsto no seu “1984”. A grande diferença é que o condicionamento em “1984” assentava num sistema totalitário e nos dias de hoje submetemo-nos inconscientemente a esses ditames por iniciativa própria, democraticamente, sem ser forçados por ninguém.

Mais importante ainda, a informação que circula nas redes sociais não é jornalismo, não é uma informação produzida segundo os códigos deontológicos que orientam a profissão dos jornalistas, não é uma informação que tenha sido verificada, cruzada através de três fontes independentes, que passe pelos olhos de editores, chefes de redação, subdiretores, diretores-adjuntos e diretores. A esmagadora maioria dessa informação ou não tem qualquer relevância, ou é lixo sem qualquer interesse ou, em casos mais específicos trata-se de campanhas de desinformação pura e dura que visam denegrir instituições, empresas, partidos, políticos, classes profissionais ou pessoas. São as incorretamente chamadas “fake news” (por definição, se uma notícia é falsa não é uma notícia) que podem resultar de campanhas organizadas, da ignorância ou dos piores e mais ignóbeis sentimentos humanos. As redes socias tornaram-se, infelizmente, o esterco informativo do mundo, embora pelo meio existam exemplos muito positivos.

E é por isso que repito, caro leitor, que se acredita que vivemos na idade da informação desengane-se: nós vivemos é na Era da Desinformação, uma desinformação brutal, colossal, que tanto o pode atingir a si, como à sua família ou à sua empresa ou ao partido em que vota ou ao político que admira ou ao medicamento que toma ou ao tratamento que faz. Na Era da Desinformação que vivemos não há qualquer controlo sobre o que circula nas redes socias. Mais: não há qualquer capacidade de punir (ou ela é limitadíssima) quem produz, deliberadamente ou inconscientemente, essa desinformação.

É por isso que, neste mar encapelado em que é preciso distinguir diariamente o que é verdade do que não é, em que é preciso discernir em que acreditar, o melhor conselho que lhe posso dar, caro leitor/gestor/professor/estudante, é que procure o jornalismo de qualidade, que lhe aparece com o selo de garantia de marcas idóneas e com provas dadas.

Quanto ao jornalismo, que nunca se poderá bater contra as redes sociais nem esperar que elas sejam erradicadas pelo poder político, a única resposta é produzir todos os dias cada vez melhor jornalismo, aumentando os patamares de exigência para todos os que trabalham nas redações, apostando na formação e rejeitando os baixos salários, a precariedade e a instabilidade laboral. Não se conseguem produtos de qualidade ao preço da chuva e pagando mal a quem os produz.

Finalmente, esta não é uma questão que diga apenas respeito ao jornalismo. Este é um problema que vai ao âmago da nossa vida em sociedade. A qualidade das nossas democracias não vive bem sem o escrutínio dos diferentes poderes, a transparência das decisões e dos atos, o questionamento do que se faz e do que se deixa de fazer – e isso não existe sem um jornalismo acutilante, rigoroso, atuante, independente, multidisciplinar.

Quanto mais frágil o jornalismo que se pratica, mais frágil a qualidade das nossas instituições e da democracia. E de fragilidade em fragilidade evolui-se para o populismo, a xenofobia, os extremismos e a tentação dos regimes musculados. É bom que pensemos nisto quando temos conhecimento que mais umas centenas de jornalistas foram despedidos ou que fechou mais uma rádio ou um jornal, sendo eles nacionais, regionais ou locais – porque o jornalismo é o sangue das democracias.

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

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