Sábado, Abril 20, 2024

Duas sugestões para uma informação menos ‘fake’

Paulo Pena, Jornalista

Desde que passei a depender, como a esmagadora maioria dos europeus, da informação que recebo nas redes sociais, a minha ansiedade cresceu. Há sempre qualquer coisa a acontecer no Mundo a que não prestei atenção. Há escândalos que percebemos pela rama, desastres que só conhecemos pelo título, estatísticas de mortes. Pouco mais há a retirar disto, diariamente, que um desabafo sobre a estultícia do Mundo. Eu não consigo, diz-me a ciência, processar tanta informação em simultâneo. Mas ela chega até mim, repetida por várias fontes, comentada e partilhada por várias pessoas, e invade as minhas preocupações. Torna-me dependente, também.

Como jornalista, essa é provavelmente a grande lição que tiro destes últimos anos que nos mudaram o mundo: a quantidade da informação não aumenta a sua qualidade. Podemos ter, como os números e a experiência demonstram, muito mais informação ao nosso dispor (em Portugal uma média de 200 notícias ‘online’ por dia, por media) mas somos, ao que parece, muito menos informados do que pensamos.

Para a lógica das redes sociais (que são empresas publicitárias) isso significa pouco. As notícias são uma parte decisiva do fluxo constante e avassalador de “conteúdos” que servem o propósito decisivo de nos manter “ligados”. Não há nenhuma distinção relevante, para o algoritmo de cada rede, entre uma notícia bem feita, uma que foi copiada em tradutor automático, um vídeo de futebol com golos de Cristiano Ronaldo, uma foto de gatinhos, uma receita de gaspacho, ou uma teoria da conspiração sobre chips nas vacinas Covid.

Todos esses estímulos servem, melhor ou pior, um objectivo: fazer-nos ficar ali.

Não acreditam? Um estudo do ano passado revelou que as principais empresas (Facebook e Google) receberam mil milhões de dólares de receitas só com grupos anti-vacinas subscritos por 48 milhões de seguidores no YouTube, Instagram e Facebook.

Esta é a evidência que temos de considerar, se acreditarmos que é a informação que nos permite ter boas opiniões (sejam elas quais forem) sobre o que nos interessa. Mais do que gráficos do Chartbeat nas redacções, palpites sobre “métricas online”, corridas ao “push” no telemóvel ou ideias de negócio insensatas baseadas na publicidade ‘online’, os media deviam reflectir sobre o seu papel secundário neste novo comércio da informação.

Para simplificar tudo numa frase batida: a boa informação ajuda a expulsar a desinformação. É uma Lei de Gresham ao contrário, se quiserem. Mas talvez se imponha algo mais do que um repto ao jornalismo.

Antes que deduzam um incentivo velado à “censura” das redes sociais, deixem-me argumentar que essa censura já existe: as empresas contratam ‘fact-checkers’, têm políticas próprias de valorização de temas. Donald Trump foi censurado. O The New York Post foi censurado. Ninguém sabe muito bem qual o critério que determina esta censura, só que foi decidido por empresas tecnológicas, e não resultou de nenhuma política pública.

Para que não fiquem dúvidas: as políticas públicas devem proteger a liberdade de informar e nunca devem tentar definir o que é, ou não, publicável.

Mas o problema mantém-se: os grupos anti-vacinas têm o direito de dizer o que querem, e de convencer cada vez mais pessoas (de todos os níveis de rendimento e escolaridade) a acreditar que as vacinas são perigosas. Isso leva a que os contribuintes ingleses tenham de pagar um reforço da saúde pública porque os casos de sarampo crescem – o país deixou de ter a doença erradicada segundo a OMS – porque os pais deixaram de vacinar os filhos.

Como podemos resolver este problema, sem proibir a divulgação de mentiras sobre vacinas (ou sobre políticos, ou sobre celebridades, ou sobre minorias, ou sobre religiões)?

Com boa informação (que permite um melhor conhecimento e, esperamos, sabedoria), claro. Mas não vou repetir esse ponto. Há duas outras formas de, sendo livres de dizer o que queremos, e de ler o que nos apetece, limitar a indústria da desinformação.

A primeira é definir regras para a identidade ‘online’. Uma pessoa, uma conta nas redes sociais.

Por isso tenho insistido, desde que comecei a investigar o mundo da desinformação ‘online’, que o principal problema das ‘fake news’ não é a mentira. Mentiras sempre tivemos… A desinformação é o processo que usa as mentiras, as propaga através de milhares (milhões?) de contas falsas para lhes dar um exército de apoiantes fictício, e que se tornam plausíveis, por muitas razões, para algumas pessoas reais que as lêem todos os dias quando abrem as suas redes e, por essa repetição, ou pela partilha de pessoas em quem confiam, se transformam em argumentos, ou em provas cabais. Por isso, defendo regras sobre a identidade digital. Isto não significa, de maneira nenhuma, que defenda a proibição, ou a limitação, do anonimato ‘online’. Em demasiados países do Mundo, esse anonimato é essencial.

A outra liberdade que temos de encontrar exige uma palavra árabe difícil: algoritmo. Devemos defender a livre escolha de algoritmos que possam traduzir as nossas preocupações nas redes sociais. Ou seja, simplificando, que qualquer pessoa possa usar o Facebook mas não dependa do algoritmo da empresa-Facebook e possa optar por outro que seja igualmente utilizável na plataforma mas concebido por uma ONG, ou por uma empresa que desenvolva uma opção alternativa que não me inunde de estímulos publicitários (ou gatinhos), ou recolha mais dados privados do que eu estou disposto a admitir.

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