Sábado, Julho 27, 2024

Paula Rego: História de uma pintora extravagante

Diogo Belford

Pode-se conhecer a história de quem nos mostrou tantas histórias? E será isso relevante ou o importante é que são as nossas histórias?
Se as obras são sempre influenciadas pela vida dos autores, no caso de Paula Rego o seu trabalho é povoado pelas suas memórias, reais ou fantasiadas, pelas estórias da sua família, pelos livros ou contos que leu. E, sobretudo, por uma visão quase infantil na clareza e na brutalidade – ao mesmo tempo honesta e fantasista.
Podemos falar, e sobretudo ler, sobre a pop art que a influenciou nos anos sessenta, no feminismo nas décadas seguintes, numa pintura do poder (e da opressão) no quotidiano ou, ainda, tentar – com mais força que destreza – inserir o seu trabalho nos grandes movimentos da história da arte, referindo o ressurgimento da pintura e as alegorias do figurativo. Mas Paula Rego sempre se mostrou desarmadamente anti-intelectual. O seu trabalho pode ter sido tudo isso e, ao mesmo tempo, um prazer pessoal, um escape e exorcismo que colocava em pastel o que não era suposto dizer.
O seu trabalho (ou as “histórias” que contava através das séries) pode gerar resistência ao primeiro olhar – pela crueza desenhada ou a ironia desavergonhada. Por vezes foi até polémica, apesar de quase sempre por culpa e vontade d’outros. Mas, como afirmou Bruno Bettelheim em relação aos contos de fadas: “A criança compreende intuitivamente que estas histórias, apesar de irreais, não são inverdades”. Esta superioridade infantil, de inventar e apreender uma história para compreender a realidade, pode não estar longe dos quadros de Paula Rego. Como explicou a própria artista “[Com as histórias] pode-se castigar quem não se gosta e elogiar quem se gosta. E depois inventa-se uma história para explicar tudo”. Talvez isto não seja assim tão diferente da motivação dos quadros de Bosch ou de El Greco.
A universalidade de Paula Rego é que mesmo nas pinturas que possam ter sido realizadas como uma vingança pessoal contra uma qualquer injustiça (e há tantas), podemos identificar a nossa história, os nossos medos, o nosso espanto. A de cada um, em cada caso, a do país e das mulheres, a dos filhos como a dos pais.
E são histórias tão extravagantes onde, como escreveu Elena Crippa, curadora das colecções de arte moderna e contemporânea britânica da Tate Britain, “não existe apenas dor ou raiva, mas também uma atitude maliciosa e subversiva que se delicia com o humor negro e as alusões atrevidas.”
As alusões, na pintura, de Paula Rego vão da publicidade – no período da técnica de ‘assemblage’ – às ilustrações e personagens dos contos infantis, passando pela iconografia religiosa (como na Ciclo da Vida da Virgem Maria, realizado por pedido de Jorge Sampaio e oferecido pela autora para a capela do Palácio de Belém). E com estas referências, a pintora entra, provoca, transforma e continua a nossa história de arte.
O título deste artigo – História de uma pintora extravagante – é um desavergonhado roubo do que encima um livro, do Prof. Fernando Marías, sobre El Greco. É, assim e mudando o género, uma homenagem à pintora portuguesa, que também viveu longe de onde nasceu, também pintou o que muitos não perceberam e também usou o dramatismo das cores para (nos) expressar.
A notícia da morte de Paula Rego chegou-nos no dia de fecho desta revista PRÉMIO. É essa a razão pela qual Rui Brito, da sua Galeria 111, ou Salvato Teles de Menezes, a propósito da Casa das Histórias – Paula Rego, falam da pintora no presente, em entrevistas que ocorreram antes da sua morte. A sua última exposição em Portugal, no ano passado e exactamente na Galeria 111, tinha o título “Saudades”.

Partilhe este artigo:

- Advertisement -
- Advertisement -

Artigos recentes | Recent articles

Um país na flor da idade

Nos últimos 20 anos Angola sofreu inúmeras transformações, desde a mais simples até à mais complexa. Realizou quatro eleições legislativas, participou pela primeira vez numa fase final de um campeonato do mundo, realizou o CAN e colocou um satélite em órbita.

David Cameron

David Cameron foi Primeiro-Ministro do Reino Unido entre 2010 e 2016, liderando o primeiro Governo de coligação britânico em quase 70 anos e, nas eleições gerais de 2015, formando o primeiro Governo de maioria conservadora no Reino Unido em mais de duas décadas.

Cameron chegou ao poder em 2010, num momento de crise económica e com um desafio fiscal sem precedentes. Sob a sua liderança, a economia do Reino Unido transformou-se. O défice foi reduzido em mais de dois terços, foram criadas um milhão de empresas e um número recorde de postos de trabalho, tornando-se a Grã-Bretanha a economia avançada com o crescimento mais rápido do mundo.

Conferências com chancela CV&A

Ao longo de duas décadas, a CV&A tem vindo a promover conferências de relevo e interesse nacional, com a presença de diversos ex-chefes de Estado e de Governo e dirigentes políticos de influência mundial.

As idas e vindas da economia brasileira nos últimos 20 anos

Há 20 anos, o Brasil tinha pela primeira vez um presidente alinhado aos ideais da esquerda. Luiz Inácio Lula da Silva chegava ao poder como representante máximo do Partido dos Trabalhadores (PT).

Uma evolução notável e potencial ainda por concretizar

Moçambique há 20 anos, em 2003, era um país bem diferente do de hoje. A população pouco passava dos 19 milhões, hoje situa-se em 34 milhões, o que corresponde a um aumento relativo de praticamente 79%, uma explosão que, a manter-se esta tendência será, sem dúvida, um factor muito relevante a ter em consideração neste país.

O mundo por maus caminhos

Uma nova ordem geopolítica e económica está a ser escrita com a emergência da China como superpotência económica, militar e diplomática, ameaçando o estatuto dos EUA. Caminhamos para um mundo multipolar em que a busca pela autonomia estratégica está a alterar, para pior, as dinâmicas do comércio internacional. Nada será mais determinante para o destino do mundo nos próximos anos do que relação entre Pequim e Washington. A Europa arrisca-se a ser um mero espetador.

Mais na Prémio

More at Prémio

- Advertisement -