Paulo Sande, Professor convidado do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
Tempos de incerteza, novas formas de vida
São inúmeros os planos em que a pandemia causada pela COVID-19 nos obriga a repensar velhos padrões, hábitos antigos, formas de funcionar, provocando interrogações e dúvidas suficientes para os próximos, muitos, anos.
Como organizarão as empresas o trabalho dos seus colaboradores? Os sistemas de saúde desenvolverão uma dimensão preventiva que impeça, em novos (inevitáveis) surtos pandémicos no futuro, o tipo de rutura a que assistimos no último ano? Vamos viver em cidades cada vez mais multicêntricas? E as relações humanas, no rescaldo dos confinamentos, alguma vez voltarão a ser, como foram, empáticas, o beijo e o abraço regressarão (pelo menos nos países latinos) como forma de expressão comum, corriqueira, simples e poderosa, da saudação, da amizade e do amor?
Entre os já muitos estudos, inquéritos, artigos e livros sobre o “futuro pós-pandémico”, recordo um pequeno texto publicado no site do Science News em dezembro do ano passado¹, de que retiro algumas frases dos testemunhos ali vertidos (todos de norte-americanos) e que ilustram a incerteza e os riscos associados aos tempos que vivemos:
Um historiador, John Barry, professor universitário, escreve que “Se o vírus permanecer uma ameaça, as mudanças podem ser profundas, tudo derivando de uma de-densificação (se a palavra existe) da vida em geral. Esta tendência afetaria onde e como as pessoas vivem e trabalham, o mercado da habitação, as práticas imobiliárias e o design interior dos edifícios”.
Katherine Hirschfeld, médica antropologista, considera provável o crescimento da divisão política e da desigualdade económica, ainda que, se a vacina for eficaz, não pense haver razões para que “um mundo pós-Covid seja um mundo pós-pandémico”.
Uma sociologista da Universidade de Indiana, Anna Mueller, escreve que vamos assistir a um aumento do número de crianças que sofreram privações, insegurança e ‘stress’ traumático, com consequências possíveis no longo prazo na sua saúde física e mental e nos seus resultados académicos.
Outro sociologista, de Harvard, Mario Luis Small, pensa que, quando o vírus estiver sob controlo, empresas, organizações e governos diminuirão a sua prática de viagens; mas tem mais dúvidas do que certezas: “Pergunto-me que novas estratégias as pessoas terão aprendido para lutar contra a solidão e evitar o isolamento, quais persistirão depois da pandemia e de que forma essas estratégias poderão afetar o nosso sentimento de fazer parte do coletivo”. Excelentes questões, na verdade.
Finalmente Christopher McKnight Nichols, também historiador, recorda o rescaldo da gripe espanhola e projeta o crescimento de atividades coletivas como concertos e eventos desportivos. E remata: “Questão aberta é saber se comportamentos sociais que damos por garantidos, como apertar as mãos e abraçar, sobreviverão”.
São opiniões que podemos ouvir repetidas seja qual for a origem, dos Estados Unidos, como é o caso, da Europa ou de outra qualquer parte do Mundo. Comum a quase todas, a dúvida e a interrogação – como será o futuro (ainda que sobre ele, apesar de Júlio Verne, seja sempre difícil especular)?
Em geral, as opiniões são unânimes, o lugar onde nos vamos encontrar quando a poeira destes dias de medo e solidão assentar não será de todo o mesmo em que vivemos durante os últimos anos. Resta saber se alguma vez foi…
Ainda há dias em Portugal, um epidemiologista, Filipe Froes, afirmava que “dificilmente voltaremos à vida pré-pandemia”.
Tantas novas interrogações sobre caminhos novos e ainda tanto para descobrir.
A vacinação e um vírus antigo: o nacionalismo tóxico
Uma dimensão que não é nova e emergiu com o início da vacinação global respeita à forma como cada Estado, ou conjunto de Estados (por exemplo, a União Europeia) agiu, e age, na corrida às vacinas, no seu uso, e na relação com o exterior. De certa forma, assistimos ao recrudescimento de um nacionalismo específico relacionado com o processo de vacinação, orientado por linhas de fratura geopolítica cujo principal motor é o egoísmo nacional.
Uma espécie de salve-se quem puder, e quem pode somos nós, sendo nós, naturalmente, quem pode (os mais ricos, os mais poderosos, os mais influentes, qualidades aliás cumulativas). Uma vez mais o egoísmo nacional mostrou a sua face negra, na forma mais pura do “nós primeiro” e os outros que morram como quiserem.
Os exemplos são muito mais do que as exceções. Inúmeros países – na verdade, todos os países – lançaram-se na corrida às vacinas, tentando ser os primeiros a atingir a imunidade de grupo, inoculando tantos dos seus cidadãos quanto possível; o que, em si, nada teria de mal, não se desse o caso dessa corrida ser exclusiva – isto é, de excluir todos os outros.
O processo assentou sobretudo nos acordos estabelecidos por aqueles países que o puderam fazer com as farmacêuticas, procurando garantir a vacinação das respetivas populações antes das restantes.
O nome atribuível a esse fenómeno é “nacionalismo vacinal”.
Hoje sabe-se que a corrida foi liderada por alguns, poucos, países, a começar por Israel, seguido de perto pelos Estados Unidos, Reino Unido, o Japão, a Europa. A compra das vacinas começou muito antes da conclusão dos ensaios clínicos. Em agosto de 2020, meses antes das vacinas estarem disponíveis, já esses países tinham encomendado mais de 2 mil milhões de doses, com o Reino Unido à cabeça – 5 doses por cidadão permitem as 340 milhões de vacinas então encomendadas pelo país.
No dia 1 de janeiro de 2021, mais de 10% dos israelistas já tinham recebido a primeira dose da vacina. Cerca de 150 mil pessoas estavam a ser vacinadas diariamente. Israel incrementou um plano de vacinação altamente centralizado, expedito e ambicioso; e também terá aceitado pagar mais por pessoa do que a maior parte dos outros países².
Reino Unido e Estados Unidos fizeram contratos muito precoces para aquisição das vacinas, também a preços elevados, e prescindiram da responsabilização das farmacêuticas³ para poderem estar na primeira linha dos beneficiários das vacinas.
Também a Europa (União Europeia) fez contratos para a aquisição de milhões de doses, ainda que se tenha atrasado na sua celebração, procurando baixar os preços e garantir a responsabilização dos produtores por eventuais erros ou defeitos nas vacinas. E há a China, claro, dona da sua própria vacina e sobre cujo processo a informação é escassa, o mesmo se podendo dizer da vacina russa.
No processo, entretanto, os países menos desenvolvidos – a maior parte dos habitantes do globo – foram deixados para trás. O problema é, em primeiro lugar, do foro moral – até que ponto, num Mundo tão globalizado, ainda é aceitável, justo, até humano, que persistam tantas desigualdades no acesso a um bem essencial como é a saúde e a vida; como é ainda possível salvar cidadãos de países ricos e deixar para trás, para morrer, em muitos casos, milhões de pessoas de países pobres?
A pergunta, que não é nem pode ser política ou ideológica (salvo as naturais perceções cínicas e interesseiras que sobre ela se pronunciam), é sem dúvida ingénua, mas não pode deixar de ser feita em nome da humanidade e do que significa ser humano.
Mas o problema não é apenas moral, é também (e talvez seja sobretudo) económico. Um estudo de janeiro da fundação ICC4 (International Chamber of Commerce) demonstrou que a falta de investimento no chamado Acelerador do Acesso aos Mecanismos contra o Covid-19 (ACT – Acess to Covid-19 Tools
Accelerator) pode provocar impactos superiores a mais de €9,2 biliões, resultantes dos choques na oferta e na procura sobre uma economia aberta assente em cadeias de fornecimento globais. Ou seja, se as economias desenvolvidas podem estar a ter sucesso na vacinação das suas populações, sendo esse particularmente o caso da China, de Israel e do Reino Unido, não o estão a ter na contenção do contágio a nível mundial.
A distribuição sub-optimal das vacinas no plano internacional provoca uma rutura séria no sistema comercial global, com impactos muito significativos no produto (PNB) de todos os países – vacinados ou não. A falta de investimento no pilar COVAX, de que é presidente José Manuel Durão Barroso, contribui para as perdas económicas.
Como o referido estudo da ICC demonstra, as perdas resultantes do nacionalismo – do egoísmo, em suma – nesta matéria, podem chegar aos 4% do produto, isto é, da riqueza, das economias mais desenvolvidas, se comparadas com uma realidade em que todos os países tivessem acesso, em condições pelo menos similares, à vacinação. Recorde-se que o referido estudo é de janeiro – e a situação não está muito melhor em finais de março, bem pelo contrário.
E a Europa? Ah, a Europa…
Apesar das promessas, e dos contratos, a que acima aludo, os europeus sentem-se desiludidos com a Comissão Europeia e com a própria União, pois o número de cidadãos vacinados continua a ser muito mais baixo do que noutros países, como é o caso do Reino Unido. Os Estados-membros, mais uns do que outros, vão fazendo pela vida: fecham e abrem fronteiras a seu talante; compram vacinas não sancionadas pela Agência Europeia do Medicamento (EMA), como a russa e até, em menor dose, a chinesa; suspendem até a utilização de vacinas sem uma recomendação nesse sentido da EMA, como sucedeu em relação à vacina da Astrazeneca (ainda que, neste caso, a tenham retomado assim que a Agência confirmou o enorme benefício da vacina, se comparado com os baixos riscos envolvidos).
É talvez injusto que assim seja, pelo menos em parte, pois a União Europeia não prescindiu da responsabilização das farmacêuticas nos contratos que com elas celebrou, em caso de surgirem problemas sérios com as vacinas, como fez o Reino Unido, por exemplo; também não aprovou cada vacina quase de imediato, procurando garantir a segurança das populações, ainda que, muitas vezes, o processo tenha sido de uma lentidão excessiva face à urgência da situação; e não suspendeu a exportação de vacinas, com a exceção da Itália, num caso.
Importa referir que a União Europeia, ao contrário de outros países (na verdade, ao contrário da generalidade dos outros países) tem feito um esforço de colaboração e de ajuda a países menos desenvolvidos, partilhando milhões de doses. A Europa é o maior provedor mundial de vacinas, exportando um maior número do que aquele a que acede, visto o elevado número de locais de produção localizados no continente.
Além disso, ao considerar a vacinação um bem do interesse comum do conjunto da União, a organização garantiu que não há diferenças significativas entre os cidadãos europeus no acesso às vacinas; e se para alguns países, os mais ricos, isso não é uma vantagem, pelo menos salvaguarda a integração europeia do risco de uma fratura significativa, que eroda ainda mais o sentimento de união entre os cidadãos do continente.
Nada disto, contudo, torna mais aceitável a política europeia em matéria de vacinação, aos olhos de todos quantos esperam ansiosamente pelo fim da pandemia e dos desconfinamentos, com a Europa de novo a braços com surtos de consideráveis dimensão e gravidade. E a nova e recente promessa da Comissão Europeia de fornecer 300 milhões de vacinas até julho, ganha ainda mais acuidade, ao elevar as expetativas num cenário de ceticismo e contestação – um novo falhanço terá sem dúvida um grande e negativo impacto sobre a credibilidade do bloco.
Resta ainda saber como funcionará – e que consequências trará para a abertura das fronteiras e as viagens dentro do bloco e para fora dele – o livre trânsito digital, anunciado primeiramente por Ursula von der Leyen e confirmado por Margrethe Vestager. Será a União Europeia capaz de convencer todos os
Estados-membros a participar e que efeitos terá o documento no espaço Schengen e na livre circulação na Europa?
Com “bazooka” ou sem ela, o que está em causa no futuro próximo é também o destino da Europa e do processo de integração de 27 países, 27 populações e das comunidades de origem e de destino que dela fazem parte.
Conclusão
Este artigo é sobre o que se convencionou chamar “nacionalismo vacínico”.
Trata-se de uma doença grave, tão grave como o vírus que as vacinas tentam combater.
Ao contrário do que os seus defensores proclamam, é um disparate económico, num Mundo extremamente globalizado e interdependente.
E é um sinal, claro e luminoso, do risco moral em que incorre a humanidade em tempos de crise.
A forma como formos capazes de o superar, o Mundo que emergir do fim – ou da banalização? – da pandemia, não tem de ser pior do que o Mundo, hoje tão distante e tão distinto, em que vivemos até ao início de 2020.
Mas se não aprendermos com as lições recebidas durante este período, pode sê-lo. E os malefícios do nacionalismo, vacinal ou identitário, agressivo ou sub-reptício, que preclude os direitos dos outros para beneficiar, em exclusivo, os dos nossos, é uma dessas lições – talvez a mais importante.
¹ https://www.sciencenews.org/article/covid-19-coronavirus-life-after-pandemic-ends-predictions 2 Referred for example
² in https://www.timesofisrael.com/israel-said-to-be-paying-average-of-47-per-person-for-pfizer-moderna-vaccines
³ https://www.reuters.com/article/us-astrazeneca-results-vaccine-liability-idUSKCN24V2EN
⁴ https://iccwbo.org/publication/the-economic-case-for-global-vaccinations/
(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)