Sábado, Abril 27, 2024

Tokyo connection

Filipe Santos Costa, Jornalista

Na época das cerejeiras em flor, quando Tóquio se pavoneia com rendas floridas, deixando residentes e turistas comovidos com tanta beleza e lacrimejantes de tanto pólen, Nakameguro é um dos lugares que tem de se visitar. Do dia para a noite, numa manhã de março, o rio que lhe dá nome fica abobadado pelos ramos floridos que crescem em ambas as margens. É um iman de Instagram, com milhares que se acotovelam nas pontes sobre o rio Meguro para tirar selfies em comunhão com a beleza singela das sakuras, em ângulos inventivos que favorecem o fotografado e escondem a multidão em volta.

Quem se disponha a esperar entre 3 e 4 horas para entrar no colossal Starbucks de Nakameguro talvez consiga um lugar na esplanada, com vista para o algodão doce que cobre o rio. Este Staba (shortname para Starbucks, pois os japoneses abreviam os nomes de tudo) é um lugar onde conflui o amor dos japoneses pelo sublime da natureza e pelo frenesi do consumismo. Cinco andares de excesso e preços inflacionados, que são um microcosmos da Tóquio cosmopolita e aberta ao mundo. Há cafés de mais de 20 proveniências, pizzas italianas e pastelaria francesa. Consta que a capital japonesa é o melhor lugar do mundo fora de Itália para se comer pizza, e já ouvi franceses, parisienses de gema, com tudo o que isso implica, admitir que se comem melhores macarrons e baguetes em Tóquio do que em Paris. Até há bifanas melhores do que muitas que se comem em Portugal. Mas não no Staba.

Para isso, tem de se andar umas centenas de metros até Meguro Ginza Shotengai. É a principal rua comercial de Nakameguro, onde melhor se sente o pulsar do bairro nas 49 semanas do ano em que as cerejeiras não estão a roubar a cena. O café Y2T anuncia como especialidade “sandes de porco de Lisboa”. Dito assim parece estranho, mas é aquilo a que um português chama bifana. Uma das melhores bifanas que comi na vida. Simplesmente deram-lhe o nome errado, pois não é daquelas bifanas solitárias e tristes de Lisboa, mas uma bifana à portuense, com muitas fatiazinhas sobrepostas e a desfazerem-se, e molhanga de sobra, num pão que, não sendo papo-seco, faz as vezes com galhardia. No Y2T também há vinho português, verde e do Dão, e a password do wifi é 2014cabriz, o ano de abertura do estabelecimento e o nome do primeiro produtor de vinho português com quem o proprietário, Tomohiro-san, fez negócio.

Nada liga Tomohiro a Portugal a não ser ter-se apaixonado por vinho verde. Quando visitou Portugal, para conhecer as origens da sua paixão, descobriu outras razões para gostar do país, incluindo bifanas e outras iguarias, e mais vinho para além do verde. Até essa epifania, Tomohiro tinha com Portugal a mesma relação que a generalidade dos seus 128 milhões de compatriotas: é a pátria do Cristiano Ronaldo e o primeiro país ocidental referido nos manuais de História do Japão.

No 5.º ano de escolaridade os japoneses aprendem que três navegadores portugueses aportaram em Tanegashima em 1543. Foi um acidente: era a estação dos tufões, e o junco chinês que devia levá-los para Macau foi arrastado até esta pequena ilha no sul do Japão. Nas escolas não há mais do que uma ou duas aulas sobre a chegada dos portugueses ao Japão. Mas, como tantos acasos, esse mudou a História.

A obra de Vhils, oferecida pela CV&A, na embaixada de Portugal no Japão

Com os portugueses, também chegaram ao arquipélago a cultura e a ciência europeias do Renascimento, o cristianismo e o comércio de bens com o Ocidente. E as espingardas. “Aliás, a ordem de referência é precisamente a inversa” – como nota Eduardo Kol de Carvalho no livro “Nós e os Japoneses”: a chegada dos portugueses é referida, antes de mais, porque levaram o arcabuz, a primeira arma de fogo vista no Japão, “o que pode chocar-nos à primeira vista se não soubermos que foi graças à espingarda introduzida no Japão pelos portugueses que os chefes militares puderam restaurar o poder central e terminar com guerras que opunham os senhores feudais e dilaceraram o país.”

Da chegada de dois Antónios e um Francisco ao Japão resultaram outros factos que merecem menção: 1) a espingarda foi a primeira invenção ocidental adotada pelos japoneses: desmontaram-na, examinaram-na, e decidiram-se a refazê-la à sua maneira, em melhor, como aconteceu com tudo o que lhes interessou vindo do exterior, fossem armas, caminhos de ferro ou pizzas; 2) Nagasaki, uma vilória de pescadores, passou a ser o principal porto do Japão, recebendo a Nau do Trato, uma das rotas mais lucrativas para os portugueses da Ásia, a que os japoneses tanto chamavam kurofune (navio negro) como takarabune (navio do tesouro); 3) os jesuítas receberam a missão de converter o Japão e foram tão eficazes (a certo ponto, tendo convertido mais de 150 mil almas, incluindo grandes senhores feudais) que passaram a ser olhados como uma ameaça ao poder central do xogun – tanto que portugueses e espanhóis acabaram perseguidos e expulsos (não apenas os missionários, mas também os comerciantes); 4) a partir dessa expulsão, os japoneses voltaram a fechar-se ao mundo com os éditos de sakoku (significa, literalmente, “país fechado”). Foram dois séculos de isolamento, quando o resto do mundo fazia o oposto.

À porta do Café Y2T há um mapa de Portugal e um cartaz que anuncia a principal iguaria da casa: ビファナ – bifana escrito em katakana, o alfabeto criado pelos japoneses para palavras estrangeiras. A língua japonesa tem três alfabetos: kanji, adaptação dos caracteres chineses, primeira escrita utilizada no Japão; hiragana, alfabeto mais simples, criado para os não letrados; e katakana, específico para palavras estrangeiras, cuja necessidade surgiu quando os portugueses introduziram conceitos e objetos até então desconhecidos dos “japões”.

Atualmente o katakana serve sobretudo para o japenglish, uma mixórdia linguística que adapta o inglês à pronúncia local, em palavras tão comuns como ‘depato’ (department store), ‘erebeta’ (elevator) ou ‘biru’ (beer). Mas começou com palavras nossas, relativas a coisas banais para nós, mas desconhecidas para eles, e que persistem até hoje com a designação luso-japonesa, como パン (pan/pão), ボタン (botan/botão), かるた (karuta/cartas de jogar), ビードロ (bidoro/vidro). Ou キリシタン (kirishitan/ cristão).

Os manuais de História costumam referir a presença portuguesa no Japão como “o século cristão”, mas não acabou bem: a perseguição aos missionários jesuítas e aos cristãos japoneses incluiu decapitações, crucificações, apostasia e outros requintes de malvadez. O cristianismo só não foi totalmente erradicado do Japão porque algumas comunidades mantiveram clandestinamente o culto – ainda hoje há descendentes desses cristãos escondidos, e diversos vestígios desse culto secreto são património da humanidade classificado pela Unesco. Também o ‘matsuri’ (festa de rua) O-kunshi é uma reminiscência da Nagasaki cristã – com a expulsão dos portugueses e perseguição aos cristãos, a festa católica anual, com a sua sorumbática procissão, transformou-se num festival popular, celebrando as colheitas e uma divindade xintoísta. Perdeu-se em avé-marias o que se ganhou em folia.

O prémio de consolação, para o catolicismo, é a popularidade de que gozam atualmente dos casamentos em estilo ocidental: as noivas adoram os vestidos brancos e o ritual, e aos domingos à tarde a promenade em frente à Estação de Tóquio parece a Exponoivas, cheia de recém-casados em sessões fotográficas.

Depois da expulsão dos missionários e comerciantes portugueses, só em 1903 Portugal retomou relações diplomáticas com o Japão. O arquipélago preparava-se para um extraordinário desenvolvimento, que lhe desenfreou a ambição e conduziu ao desastre da II Guerra Mundial. Portugal, a antiga potência global, vivia a decadência da nobreza arruinada. O Japão reergueu-se sempre; Portugal nem por isso.

Há bibliotecas inteiras sobre “o milagre japonês”, que na verdade são vários: a explosão industrial da transição para o século XX; a reconstrução do único país dizimado por bombas atómicas até se afirmar como segunda maior economia do mundo; a capacidade de superar sempre as condicionantes da natureza – terramotos, tsunamis, tufões, vulcões ativos, clima extremo, pouca terra arável, reduzido território habitável… Sem lamúrias nem autoindulgência, mas com estoicismo e sentido de comunidade, características que tanto erguem uma nação como ajudam a suportar os apertos do metro em hora de ponta na estação de Shinjuku.

Em março deste ano a representação diplomática de Portugal no Japão passou para novas instalações, finalmente à altura dos quase 500 anos que passaram desde o primeiro encontro. Quando lhe pediram uma obra para a nova embaixada, Alexandre Farto – a.k.a. Vhils – colocou Camões no centro da imagem, onde também se destacam o Monte Fuji e um pagode. Na inauguração da embaixada e da obra (oferecida pela Cunha Vaz & Associados), Vhils falou da arte como lugar de mediação.

“A obra procura estabelecer um diálogo intercultural, explorando a riqueza simbólica e história partilhada entre Portugal e o Japão. A seleção de elementos como Camões, Monte Fuji, glimpses de olhares, palavras comuns entre os dois países, e templos japoneses, visa ilustrar pontos de encontro e convergência entre as duas culturas, enfatizando a importância do intercâmbio e da compreensão mútua. Visualmente, a obra incorpora tipografias e padrões específicos de cada país, como a caligrafia japonesa e os tradicionais azulejos portugueses, enfatizando a singularidade e a riqueza de cada tradição cultural. Ao utilizar a técnica de colagem de cartazes japoneses e subsequente pintura em branco, pretendo questionar a percepção das fronteiras culturais e destacar a fluidez e a permeabilidade das identidades”, explicou-me Vhils, entre viagens por outras paragens do globo.

Fronteiras e permeabilidade, fluidez e convergência, intercâmbio e compreensão. Os conceitos por detrás da obra de Vhils em Tóquio são a essência daquilo que fez a história comum dos dois países. Com altos e baixos, com intencionalidade ou acaso, há uma ligação que não se quebra. Vhils fala de uma “conexão intrínseca entre culturas distintas, transcendendo as diferenças superficiais e revelando a universalidade da experiência humana”. Mesmo quando a distância não ajuda, a política não entende e os negócios não investem, pode ser essa a chave para entender a conexão entre Portugal e Japão.

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