Sábado, Julho 27, 2024

“Honne to Tatemae”

Sónia Ito, Arqueóloga e Professora

Chamo-me Sónia, e vivo numa pequena cidade costeira perto de Tóquio, nos 377.900km quadrados do Japão (Nippon), a terceira maior economia mundial.

Os 126 milhões de japoneses vivem em 30% de área costeira habitável das quatro principais ilhas vulcânicas, cuja cultura merece ser melhor conhecida neste ano de Jogos Olímpicos no Império do Sol Nascente.

Apresentar um pouco desta cultura única vista por uma cidadã de origem Portuguesa em meia dúzia de caracteres é impossível de cumprir.

Sou Portuguesa e Japonesa. Com muito orgulho! Nasci e vivi 5 anos em Angola, aos 13 anos troquei Portugal pelo Japão e já lá vão mais de 30 que cá vivo. Percebem, pois, porque sou também Japonesa. Nunca me esquecerei da partida e de, com os meus amigos, termos feito o meu “funeral” de despedida. Ainda inexperientes, receávamos nunca mais nos revermos.

O Japão é do ponto de vista cultural um claro antípoda do ocidente. Desde a chegada, em 1982, entendi que neste país todos os dias se aprende. Mas, graças à minha família, a minha face portuguesa permaneceu. Quem tem o percurso que tive sente-se como uma moeda: duas faces co-dependentes, que se completam, sem que percam cada uma a sua personalidade.

Ou será que não? Quem vem viver para o Japão recorda sempre a aventura da sua existência. Parece que fazemos parte daquelas Naus Portuguesas que no século XVI trouxeram os primeiros ocidentais e, com eles, presentearam o povo local com novidades como as primeiras armas de fogo, e também palavras que ficaram como: abóbora, meias, pão, castela (pão de ló), confeito, piripiri, vidro, capa, carta, ombro, “Pin kara Kiri made” com possível tradução “de pinta a Cristo” e tantas outras.

Os portugueses estiveram por cá apenas cinquenta anos (de 1640 a 1854 os portos fecharam para estrangeiros), mas estas raízes permanecem firmes e profundas. No Japão, ser português é sinónimo de respeito e consideração incondicional. Pelo menos aparentemente.

Embora agora a minha carreira seja outra, sou licenciada em Antropologia e Arqueologia, actividades que me continuam a ajudar e fascinar.

A grande riqueza cultural de costumes e tradições japoneses inclui duas distintas filosofias coexistentes: o xintoísmo (trad: rumo dos Deuses), derivado do animismo, e o budismo, adaptado no Séc. VI (via Coreia e China), mas que é a base da cultura nipónica.

Cada passo, cada acto, às vezes, cada gesto, tem invariavelmente duplo sentido: o óbvio e uma mais discreta e profunda razão de ser. Em japonês chama-se “Honne To Tatemae” (a intenção verdadeira e a aparente)”. É incrível como são necessários anos de vida quotidiana para absorver este pormenor que é o “Honne to Tatemae”.

Aprecio o enigma da vida no Japão e vivo com entusiasmo esta ausência de certezas absolutas. Diz-se com frequência que “Mai Nitchi ga Benkyou” (todos os dias se aprende). Utchi e Soto: dentro e fora, distinguem o privado e o social. Cada casa, além de ser pequena, é considerada um espaço sagrado e privado. É raro ser-se convidado a casa de alguém e quando essa ocasião surge é uma grande honra. O convidado foi aceite no núcleo “Utchi”, ultrapassa a extrema reserva e cria um laço forte e verdadeiro. É raro um japonês repetir “amo-te”. Uma vez dito é para sempre, é determinante, é verdadeiro e para toda a vida.

Até no acto de descalçar os sapatos o detalhe é delicioso. Antes de entrar em casa, alguns restaurantes e, claro, nos templos e pagodes não se leva o que é impuro para dentro. Além de ser altamente higiénico, simboliza o respeito, a veneração pelo que se considera sagrado. Já li, e diz-se por cá, que no Ocidente já assim foi e que a primeira coisa que Deus diz a Moisés é: “descalça os sapatos e entra em solo sagrado”.

Para dar a conhecer um pouco do Japão antes de decidirem reservar a viagem para visitar este que também é o meu País, aqui deixo a descrição de uma tradição do divino Ano Novo. Dias antes do final do Ano as preparações começam. Casa, empresas, escolas, tudo que é “dentro” (Utchi), passam pelas grandes limpezas de fim de ano: chão, janelas, paredes, cortinas, móveis, as impurezas do velho ano são limpas para o novo poder “entrar” neutro carregado de felicidade. As limpezas (no Japão não há empregada doméstica) terminam dia 30, deixar para o último dia do ano não traz sorte. Cada família cozinha Osetchi Ryori; uma variedade de mais de 20 petiscos com 2000 anos de tradição. Cada um com seu significado especial; o feijão doce: sabedoria; castanhas doces: fortuna; gambas: longevidade. Saúde, prosperidade, felicidade, sorte, paz, harmonia correspondem a outros alimentos.

A mesa fica posta para os três primeiros dias do Ano, pronta para festejar e petiscar com os familiares que visitam. E este ano, sem as visitas da praxe, o valor e a mensagem desta linda tradição é ainda maior.

Espero que durante os Jogos Olímpicos possam visitar-nos com mais liberdade e termino desejando a todos um Feliz Ano. 

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