Paulo Sande, Professor Convidado do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
O que faz e para que serve
Em primeiro lugar e em bom rigor, é da presidência do Conselho da União Europeia (UE), ou Conselho, que se trata. Esta é a instituição que representa os governos dos Estados-membros (EM) e tem como principais competências a adoção de atos jurídicos e a coordenação das políticas europeias. O Conselho não se confunde com o Conselho Europeu, instituição composta pelos chefes de Estado e de governo, cuja função consiste em definir as prioridades europeias e a orientação política geral.
Desde o início do processo de integração, a presidência do Conselho é assumida rotativamente por um EM pelo período de seis meses (tudo começou com a Bélgica, em 1958). A presidência tem uma dupla função política e administrativa, sendo esta a organização e gestão do funcionamento das formações do Conselho.
Durante o semestre, o país em causa preside às reuniões do Conselho, em todos os seus níveis e composições, com exceção da formação dos negócios estrangeiros (presidida pelo Alto Representante para os Negócios Estrangeiros, presentemente o espanhol Josep Borrell); recebe do país que o precedeu os trabalhos em curso e transmite-os ao que se segue na função; e cabe-lhe dar impulso político aos vários dossiês em discussão, conforme ao programa do trio de presidências (ver abaixo) e ao seu próprio programa.
O Tratado de Lisboa estabeleceu uma nova organização baseada no trabalho conjunto de três países que consecutivamente exercem o cargo, os quais estabelecem um programa para 18 meses. Começamos por analisar o programa da responsabilidade do trio constituído por Portugal, Alemanha (presidência anterior) e Eslovénia (seguinte).
Agenda estratégica para a Europa – de 1 de julho 2020 a 31 de dezembro 2021
A primeira constatação é a centralidade da pandemia de COVID-19 no programa para os três semestres iniciados a meio de 2020. O documento que o apresenta resume-o bem:
“As três presidências tudo farão para reforçar a resiliência da Europa, para proteger os nossos cidadãos e para ultrapassar a crise, preservando em simultâneo os valores e o modo de via europeu”. Crise sanitária e crise económica, ambas ainda por vencer.
O programa assenta nos princípios do mapa para a recuperação (“A roadmap for recovery”), de 22 de abril 2020, basado na solidariedade, coesão e convergência, para uma recuperação flexível, ágil e evolutiva, inclusiva e respeitadora dos valores europeus e do Estado de Direito. No seu âmago, modelo económico europeu para o futuro, situa-se primeiro a reparação e aprofundamento do mercado interno, danificado pela pandemia; a prossecução das transições verde e digital, o apoio às PME’s e ‘start-ups’, a construção de infraestruturas resistentes em particular na saúde e a produção de produtos estratégicos para reduzir a dependência europeia. E salienta-se a implementação de uma União da Energia focada na sustentabilidade e na transição para a neutralidade climática, ativo fundamental no esforço de recuperação.
Nesse âmbito, são centrais os conceitos da soberania digital e da autonomia estratégica da União Europeia, nomeadamente assente numa política industrial dinâmica. Merece relevo a afirmação seguinte, constante do programa: “a transformação digital é algo que vai moldar o dia-a-dia na Europa, mas é também algo que a Europa pode moldar”.
A recuperação, entretanto, depende de um investimento sem precedentes, baseado em objetivos comuns e focado nas necessidades. O programa refere um Fundo de Recuperação (FR) ligado ao quadro financeiro plurianual da União (QFP), fundo esse na altura apenas uma promessa – concretizada amplamente em julho. Quer o FR, sob forma de Programa de Recuperação e Resiliência, quer o QFP, só foram desbloqueados em dezembro, mas o seu volume e natureza – empréstimo solidário, assente num lançamento obrigacionista garantido pelo orçamento europeu – representam em si mesmo uma revolução de enorme impacto e significado.
O programa sublinha ainda a dimensão global da UE, com responsabilidade na conceção e realização de uma resposta à pandemia através do multilateralismo e de uma ordem internacional assente no direito. Num tempo ainda de administração norte-americana hostil à ideia, o objetivo era mais esperança do que meta atingível; a expectativa, entretanto, é de uma mudança que efetive um multilateralismo profícuo e responsável.
No plano interno, e na linha do estabelecido no mapa para a recuperação, prevê-se o desenvolvimento do sistema de governança da União, tornando-a mais resiliente, eficaz e eficiente, sempre no respeito dos valores fundamentais.
O programa contempla a implementação do pilar europeu dos direitos sociais, para enquadrar uma Europa justa e social, incluindo a realização da Cimeira Social Europeia em maio de 2021, sob presidência portuguesa. E coloca forte expetativa na Conferência sobre o Futuro da Europa, ainda que não seja fácil perceber o caminho a seguir para que não se torne mais uma reunião de vontades inconsequentes, num tempo de (ainda) pandemia e pragmatismo pouco sensíveis a proclamações de boas intenções.
O programa aborda também a relação futura com o Reino Unido. À data da sua aprovação, era ainda possível a extensão do prazo para um acordo – essa possibilidade expirou no final de junho -, tendo em vista uma relação baseada no equilíbrio de direitos e obrigações e na garantia de uma plataforma de igualdade (“level playing field”).
O documento aborda muitas outras matérias: a proteção das liberdades dos cidadãos europeus, incluindo um mecanismo relativo ao Estado de direito; o reforço da igualdade e diversidade cultural; um novo pacto para as migrações e um Sistema Europeu de Asilo eficaz; a proteção das fronteiras externas, fazendo funcionar de novo a área Schengen; sistemas de investigação com forte base digital, para acelerar a inovação para o crescimento, a melhoria das competências pessoais, educação e saúde; o Horizonte Europa e Erasmus+; e a promoção dos interesses e valores europeus no Mundo. Uma palavra especial para o ambiente, em linha com os objetivos do Acordo de Paris, e à relevância atribuída ao Novo Plano de Ação da Comissão para a Economia Circular.
Um programa para muitos anos, como se pode compreender, impossível de concluir em 18 meses, e muito menos num semestre.
Entre a presidência alemã e a portuguesa
Uma presidência alemã é uma presidência alemã, um dos dois grandes motores tradicionais da integração europeia, da qual se espera sempre eficácia e eficiência.
Este ano, contudo, tudo foi mais difícil. A pandemia impediu a concretização de muitos dos objetivos dos germânicos, como reconheceu há alguns dias a própria Ângela Merkel. Ainda assim, vários resultados ficam a assinalar este primeiro semestre do trio alemão-português-esloveno. Dois assumem particular relevância:
– A aprovação, em julho, e o desbloqueamento, em dezembro, do Fundo de Recuperação, associado ao regulamento da condicionalidade do Estado de Direito. A Europa vai dispor dos recursos para ajudar os mais necessitados dos seus cidadãos, através de um modelo inédito de tomada de dívida garantida pelo orçamento da União, ilustração última e poderosa da solidariedade europeia.
– A transição climática, com o objetivo da redução do gás com efeito de estufa até 2030 a subir de 40 para 55% (em relação a 1990). Uma decisão histórica, ambiciosa, pela qual, afirmou Merkel, “valeu a pena perder uma noite de sono”.
Mas houve muitos dossiês inacabados, decisões por tomar, progressos por obter. É o caso das migrações/refugiados, com uma proposta da Comissão pendente. A relação com a Turquia, no seu conflito com dois Estados-membros, a Grécia e Chipre, ficou igualmente por resolver, com a tímida tomada de posição do Conselho Europeu de dezembro a constituir uma desilusão (mas não uma surpresa).
E agora, Portugal?
Vários objetivos previstos no plano do trio tornam-se agora preocupações portuguesas. E Portugal decerto deixará dossiês por encerrar para a presidência eslovena.
Qual é então o programa da presidência portuguesa e que objetivos prossegue? A resposta encontra-se no sítio Internet e no próprio programa da presidência (https://www.2021portugal.eu/pt/programa/). São cinco as grandes prioridades, alinhadas com a agenda estratégica da própria União:
– A resiliência europeia, pelo aumento do investimento e a recuperação da economia (incluindo implementar o QFP e o PRR), e o reforço da solidariedade e dos valores.
– A Europa social, visando a melhoria do modelo social europeu e da coesão social; destaque para a Cimeira Social de maio como meio de debater a dimensão social para a retoma da economia, a transição digital e climática e a implementação do pilar europeu dos direitos sociais.
– A Europa Verde, âmago da primeira grande transição, promovendo o pacto ecológico, a economia azul e as políticas energéticas e de transportes.
– A Europa digital, a outra – e gémea – transição, com o ambicioso objetivo de promover a liderança europeia na economia digital, desenvolvendo ainda o conceito da democracia digital.
– E por fim, mas não por menos, a Europa global. Em destaque o multilateralismo, os mecanismos de regulação da globalização, a resposta conjunta a crises e emergências humanitárias, atenção especial às relações com África e o reforço da relação com a Índia (uma Cimeira pode ter lugar durante o semestre, assim o permita a pandemia). No âmago dessa relação global, avulta o relacionamento estratégico –utilizada a palavra parceria – com o RU (assim o permita o acordo sobre as relações futuras); e ainda as relações transatlânticas com o país que é, nas palavras do Alto Representante para os Negócios Estrangeiros, o principal parceiro estratégico da Europa – os Estados Unidos.
Outros assuntos, objetivos da presidência alemã mantidos em aberto por força das circunstâncias, passam também necessariamente pela presidência portuguesa: é o caso das migrações, quer na ótica dos refugiados quer dos migrantes económicos, questão por resolver de enorme importância para a Europa, de difícil solução, com atenção redobrada às fronteiras externas e ao papel de agências europeias, como o Frontex.
O que restar para negociar do Brexit, será naturalmente parte da agenda do Conselho, e por isso objeto da atenção da presidência. O mesmo se diga da pandemia e da coordenação das políticas sanitárias, com a vacinação na primeira linha.
No plano político, ainda, a questão da insegurança e instabilidade no mediterrâneo ocidental e, no externo, o arranque do relacionamento com a nova administração norte-americana, serão pontos altos na agenda europeia (ainda que partilhados entre a presidência e o Alto Representante para a Política Externa). E há o terrorismo, as ameaças à segurança europeia, os populismos e tantos outros temas que, por ser a agenda baseada em planos e programas preparados com antecedência, não deixarão de se impor se as circunstâncias assim o exigirem.
São talvez demasiados e muito complexos os objetivos para um período de seis meses, alinhados em grande parte com a agenda europeia e o programa do trio. Mas também é certo que Portugal já por três vezes presidiu à União Europeia.
Os nossos diplomatas, funcionários, peritos e responsáveis têm grande experiência na gestão de dossiês complicados e a confiança das instituições e decisores europeus. Serão decerto seis meses muito exigentes, mas que se espera concluídos com sucesso e avanços substanciais na melhoria da integração europeia e da vida dos seus cidadãos.