Luís Barreto Xavier, Consultor Abreu Advogados
A omnipresença da tecnologia
Em 2020, a consciência da transformação digital da economia e da sociedade está no centro da atenção das empresas, dos decisores públicos e das famílias.
Não é novidade a ascensão das ‘Big Tech’, os gigantes tecnológicos que se tornaram as empresas mais valiosas do mundo, de acordo com a sua capitalização bolsista. A Amazon, a Google, o Facebook, a Microsoft, a Apple, para não falar das chinesas Alibaba ou Tencent, ou ainda a Uber e a Tesla, a Netflix e o Spotify, são hoje parte importante da economia mundial e estão incrustadas como lapas no nosso novo quotidiano.
À revolução digital estão associados vários fatores de ordem técnica, que a permitem e potenciam: o aumento da capacidade computacional e a disseminação dos serviços de ‘cloud computing’; o enorme volume de dados disponíveis; em articulação com os aspetos anteriores, o desenvolvimento da inteligência artificial, a área de conhecimento com mais impacto na transformação digital, especialmente através da aprendizagem automática (‘machine learning’), do ‘deep learning’ e das redes neuronais.
No plano económico, as transformações tecnológicas vieram possibilitar novos modelos de negócio, com disrupção em vários mercados – dos serviços financeiros à mobilidade, dos ‘media’ ao entretenimento ou à saúde, e novas experiências de consumo. Na sua base estão a recolha, o tratamento, a comercialização e o uso customizado de um enorme volume de dados (‘big data’).
Para a sociedade, é brutal o impacto das transformações tecnológicas. Vai-se alterando mais ou menos radicalmente o modo como produzimos bens e serviços (designadamente pela automação e robotização), como contratamos (com menos intermediação), ou consumimos (com experiências mais personalizadas). O perfil do trabalho humano altera-se, desaparecendo as tarefas mais rotineiras.
No plano geopolítico, sobressai a concorrência entre Estados Unidos e China pela supremacia tecnológica, à qual não é alheia a guerra comercial em curso. Nenhum dos gigantes tecnológicos tem sede na Europa.
Potencial e riscos
Esta revolução industrial 4.0 traz consigo um grande potencial para aumentar a qualidade de vida das pessoas e a produtividade das empresas.
Tudo indica que o processo de digitalização continue a acelerar, com o impulso adicional de novos desenvolvimentos como o 5G, o ‘quantum computing’, ou a disseminação da IoT (internet das coisas).
No caderno de encargos dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos são colocados hoje problemas como o das alterações climáticas e do excesso de produção de carbono.
Mas este processo encerra também uma bateria de riscos que não podemos perder de vista.
A privacidade individual é ameaçada ou destruída pela recolha e monetização dos nossos dados, bem como pelas tecnologias de reconhecimento facial, vocal e de emoções.
Os estados totalitários, de inspiração orwelliana, fortalecem-se pela vigilância e pela engenharia social, bem como pela digitalização da guerra. As democracias liberais são testadas pela manipulação das ‘fake news’ nas redes sociais e pelas quebras da cibersegurança.
O fortalecimento das ‘Big Tech’ representa a detenção por entidades não legitimadas democraticamente de um importante poder sobre a vida de todos, num espaço globalizado.
O desigual desenvolvimento tecnológico permite ou acelera o aumento das disparidades entre pessoas, empresas e países.
A automação de decisões resultantes de algoritmos de ‘machine learning’ aplicados na concessão de crédito, na oferta de seguros, no recrutamento de trabalhadores ou de estudantes acarreta um défice de transparência e um risco de enviesamento (‘bias’).
Com a desnecessidade de realização humana das tarefas menos criativas, a robotização leva à perda de postos de trabalho, provavelmente compensada apenas de forma parcial pelo surgimento de novas profissões. Em qualquer caso, pode emergir uma “geração perdida”, sem capacidade para se reinventar profissionalmente no novo paradigma tecnológico.
Regulação
No contexto sumariamente descrito, a questão fundamental da próxima década será a seguinte: poderá a regulação potenciar os benefícios e limitar os danos causados pela revolução tecnológica?
Há um argumento contrário e muitos obstáculos à eficácia da regulação. Contra a regulação pode invocar-se a necessidade de incentivar a inovação, que uma regulação necessariamente limitadora poderia tolher. No sentido de que os esforços de regulação seriam inglórios, pode invocar-se que é irrealista pensar em regulação à escala global, a única que teria um espectro suficiente; que o legislador dificilmente conseguirá acompanhar a evolução tecnológica, estando condenado a elaborar regras rapidamente tornadas obsoletas; que só será eficaz uma regulação setorial e adaptada a cada tecnologia específica, e, por esse motivo, impossível de conseguir; que o braço de ferro entre reguladores e ‘Big Tech’ dificilmente será ganho pelos primeiros; que o ‘enforcement’ será muito desigual.
Pode a regulação ultrapassar estes obstáculos? Esta questão – neste momento sem resposta – é, na minha perspetiva, a mais importante da próxima década.