Quinta-feira, Abril 18, 2024

“Seria muito fácil resolver-se o problema da reinserção em Portugal”

Entrevista a Duarte Fonseca, Director Executivo da Reshape

Catarina da Ponte

Mudar a legislação prisional em Portugal e lutar por um mundo onde a reinserção é a regra e não a excepção são os “mantras” de Duarte Fonseca, director executivo da RESHAPE, associação que co-fundou em 2015, mas que começou a desenhar assim que acabou o curso de terapia ocupacional. Antes de se dedicar inteiramente a esta causa, estagiou numa prisão, passou pela empresa Beta-i, onde revela ter tirado o seu curso de gestão e inovação e foi coordenador de estratégia da associação Just a Change. Desde 2019 que se dedica a tempo inteiro à RESHAPE com o objectivo de “fazer evoluir as leis de um ponto de vista mais humano e progressista para que a reinserção seja possível”.

Quando se fala na RESHAPE há uma associação, quase imediata, com a marca Reshape Ceramics (a vossa “face” comercial), mas a marca RESHAPE é muito mais do que um negócio social, pode explicar o trabalho que desenvolvem no seio da comunidade prisional em Portugal?

Sim, a RESHAPE é uma associação, uma IPSS que tem uma área de apoio social, na qual temos programas de desenvolvimento de competências sociais, um gabinete de apoio individualizado, mentorias, apoio à empregabilidade e apoio jurídico. Depois temos, ainda, a Reshape Ceramics e a área de Advocacy, porque a reinserção não é possível se a sociedade não estiver sensibilizada e se também não criar oportunidades para estas pessoas que saem das prisões. Nesse sentido, trabalhamos muito com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, com a Secretaria de Estado e com o Ministério da Justiça, para fazer evoluir as leis do ponto de vista mais humano e progressista para que a reinserção seja possível. Fazemos também campanhas de comunicação para aumentar a consciencialização das pessoas e realizamos um grande evento anual, o Prision Insights para tornar esta área um bocadinho mais ´sexy´. O ano passado o evento aconteceu na Fundação Calouste Gulbenkian e tivemos 350 pessoas de 11 países.

Sente que já houve algum tipo de evolução no sistema prisional português desde 2015, ano em que fundaram a Associação, até à data?

Em termos de sistema no seu todo, acho que a grande evolução foi o “chamar a atenção” para o problema. A sociedade está um pouco mais desperta para este tema, mas não quer dizer que esteja no caminho certo. Vimos isso nas últimas eleições, nunca se falou tanto em pena de morte e prisão perpétua. Portanto, pelo menos o tema está na “boca do mundo”. O sistema em si, é o único que desde o 25 de Abril piorou. Se olharmos ao sistema de habitação, ao sistema de ensino, ao sistema nacional de saúde num espectro de 50 anos, o sistema prisional é o que está pior. Há uma falta de recursos crónica e uma falta de investimento que é transversal a qualquer governo porque é um tema difícil. É um tema que ninguém quer “pegar” porque custa muito dinheiro e porque estamos a falar de pessoas que cometeram crimes, portanto, ninguém quer apoiar. Diria que não houve evolução nestes 10 anos e em algumas coisas até se andou para trás.

Actualmente desenvolvem a vossa actividade em quantos estabelecimentos prisionais?

Em quatro: Alcoentre, Vale de Judeus, Caxias e Izeda (Bragança), neste último o acompanhamento é digital. Depois temos outras prisões com quem trabalhamos à distância como Leiria Jovens e Torres Novas, que nos reencaminham pessoas que vão sair e que são da zona da grande Lisboa, e nós a partir daí começamos a trabalhar com elas antes de saírem, para quando saírem em liberdade, podermos encaminhar para o mercado de trabalho. Portanto, na verdade trabalhamos com seis estabelecimentos prisionais. O nosso objectivo não é ir para as 50 prisões, mas sim mudar o sistema prisional e, portanto, não pretendemos escalar muito mais do que aquilo que já temos.

Conseguem ter a noção do número de pessoas que já impactaram?

Sim, já apoiamos mais de 300 pessoas. Por ano, passam pelos nossos programas mais de 100 pessoas. Algumas são repetidas. O que acontece é que o nível de apoio é muito diferente. O Filipe [nome fictício da pessoa que estava no ´atelier´ a trabalhar no momento da entrevista] conhecemos em 2019 e acabou por passar por todos os programas que nós temos e isso é o ideal e, portanto, o impacto é muito mais visível. Outras pessoas acabamos por perder o rasto, porque, entretanto, são libertadas, são transferidas de prisão, etc. Também já temos casos de insucesso, de pessoas que voltaram a ser presas. No final de contas, isto depende deles, nós podemos tentar facilitar o caminho, mas o caminho depende deles. Não consigo dar um número exacto. Aquilo que consigo dizer é que pessoas que passaram pela Academia Reshape, que são acompanhadas, de forma comprometida do lado deles, pelo Gabinete Reshape, regra geral em meia dúzia de semanas estão a trabalhar seja aqui [no ‘atelier’ da Reshape Ceramics] ou noutro lado.

“AS PRISÕES DEVEM SER
SUBSTITUÍDAS, TENDENCIALMENTE, POR
CASAS DE DETENÇÃO E ESTAS CASAS
SIM, JÁ PODEM ESTAR NOS GRANDES
CENTROS DAS CIDADES E INSERIDAS NA
COMUNIDADE.”

A RESHAPE assegura esses postos de trabalho?

Sim, trabalhamos com uma série de empresas, fazemos parte da RedEmprega em Lisboa, que é gerido pela fundação Aga Khan, pela Câmara Municipal de Lisboa e pela APEA, a Associação Portuguesa de Emprego Apoiado e depois também trabalhamos directamente com algumas empresas.

São empresas directa ou indirectamente relacionadas com a área da cerâmica?

Por acaso, acho que nunca empregámos ninguém da área da cerâmica. O projecto da Reshape Ceramics, mais do que ensinar um ofício serve para dar uma oportunidade de trabalho, rotinas de trabalho, e a seguir a isto essas competências são transversais a qualquer trabalho, desde que se saiba trabalhar em equipa.

Porque escolheram a cerâmica? Podia ter sido outro ofício, outra área de negócio…

Sim, se soubéssemos o que sabemos hoje, se calhar não teríamos começado pela área da cerâmica (risos). Basicamente, a Reshape Ceramics nasce de um projecto falhado da Associação, inspirado na Delta que já tem uma série de oficinas em meio prisional, acho que são onze, onde fazem o arranjo das máquinas de café e dos moinhos de café e pagam o mesmo às pessoas que estão presas que pagam às pessoas que estão na sua fábrica de Campo Maior. Não fazem distinção. O nosso pressuposto para ajudar à reinserção no trabalho foi inspirado neste projecto da Delta e, então, fomos propor a várias empresas criar oficinas connosco dentro das prisões e começámos a tentar vender esta ideia a muitas empresas e ao mesmo tempo a visitar as prisões e os seus espaços vazios onde potencialmente as empresas pudessem montar as suas oficinas. Não conseguimos convencer nenhuma empresa a vir connosco lá para dentro, mas encontrámos uma série de oficinas com imenso potencial. Deparámo-nos com esta antiga olaria em Caxias, totalmente equipada, tinha forno, tinha ferramentas, tinha prateleiras, até matéria-prima lá tinha. E então pensámos: “será que com meia dúzia de euros não se consegue fazer qualquer coisa? A cerâmica está na moda..”, mal sabíamos que “isto” tem muito mais que se lhe diga, do ponto de vista químico, do ponto de vista técnico e do ponto de vista do ´know-how´, do que aquilo que sabíamos. E começámos assim, não nos arrependemos, mas diria que a curva de aprendizagem tem sido difícil nos últimos dois anos, lançámos a Reshape Ceramics em 2020.

Como medem o impacto dos vossos programas?

É uma ‘never ending story’ de tentar melhorar os indicadores. Mas, essencialmente, medimos de duas formas: em vez de perdermos muito tempo com burocracias, o que analisamos é se a pessoa após dois anos de ter estado connosco está empregada e se não voltou a ser presa. Aí temos a certeza que foi impactada. Só que isto é uma medição a longo prazo e não conseguimos fazer com todos porque muitos perdemos o contacto. Então, o que fazemos pelo caminho é definir cinco dimensões que avaliamos: o processo jurídico; o apoio social; a empregabilidade; a formação e a saúde. Nas cinco tentamos intervir, apesar de algumas ainda conseguirmos pouco. Por exemplo, estamos a tentar fechar uma parceria com um grupo de saúde que nos permita, pelo menos, apoiar a questão dentária e a questão de apoio psicológico, que são duas das coisas que nos pedem muito cá fora, porque a autoestima e a autoimagem são 70% do caminho de reinserção. Uma pessoa que esteja bem consigo própria vai conseguir, vai mais confiante para uma entrevista, vai fazer as coisas, vai acordar com energia e a probabilidade de reinserção é muito maior. Já temos o apoio jurídico com a Morais Leitão, que é óptimo e na área da saúde estamos a tentar fechar uma parceria. O impacto também se mede nestas pequenas coisas. Há uma sexta dimensão que gostávamos de estar a trabalhar, mas que é das coisas mais difíceis em Portugal, a habitação. Há uma grande falta de habitação para quem sai e não tem ninguém, nenhum suporte social, e nós ainda não temos essa reposta, estamos a tentar abrir uma casa de saída para colmatar esta situação.

“O NOSSO OBJECTIVO NÃO É IR
PARA AS 50 PRISÕES, É MUDAR O
SISTEMA PRISIONAL E, PORTANTO, NÃO
PRETENDEMOS ESCALAR MUITO MAIS DO
QUE AQUILO QUE JÁ TEMOS.”

A RESHAPE Ceramics, mais do que ensinar um ofício, serve para dar uma oportunidade de trabalho

Qual considera ser o sistema prisional mais inovador?

Eu acho que todos os países ainda estão na mesma lógica de sistema prisional. Para termos uma ideia, a prisão enquanto pena é algo muito recente na história da humanidade, nasce há 250 anos, pelo Cesare Beccaria, um italiano que escreve um livro e é considerado o pai da Penal Moderna Contemporânea e, na altura, foi altamente humano porque o que havia era a detenção, que existia só para as pessoas esperarem pelo castigo, que seria corporal, o desterro ou a morte, portanto, a prisão na altura foi altamente humana. Mas a partir dai nós continuamos a usar os mesmos princípios de tratamento penitenciário que há 250 anos. Depois podemos dizer: “mas nessa altura as condições de infra-estruturas não eram tão boas”. Certo. Mas hoje em dia a evolução não foi assim tanta. Em 2008, em Portugal, ainda havia prisões com o chamado “balde higiénico”, ou seja, prisões que não tinham casas de banho para todos. Nós acreditamos, e se olharmos para todos os problemas sociais, todos fizeram este movimento desde os anos 80, no movimento da comunidade. As prisões devem ser substituídas, tendencialmente, por casas de detenção e estas casas sim, já podem estar nos grandes centros das cidades e inseridas na comunidade. Teríamos uma casa de alta segurança, uma casa para alfabetização, uma casa para mães e uma casa para idosos com falta de mobilidade.

“HÁ UMA FALTA DE RECURSOS
CRÓNICA E UMA FALTA DE INVESTIMENTO
QUE É TRANSVERSAL A QUALQUER GOVERNO
PORQUE É UM TEMA DIFÍCIL.”

E já se assiste a esse movimento noutros países?

Sim, este movimento começa a aparecer em vários países como a Bélgica, Holanda, Malta, Itália e França. Nós fomos co-fundadores de uma associação internacional, sediada em Bruxelas, que se chama ‘Rescaled’, que segue exactamente este princípio. Mas se tivesse de eleger um, diria o modelo francês, que apesar de ter um sistema prisional péssimo, tem umas casas que se chamam “Le placement à l’extérieur” com quintas, onde eles cumprem os dois últimos anos de pena para reinserção. O sistema holandês também tem este modelo. Um dia, a Reshape Ceramics não será aqui [no ‘atelier’], será dentro de uma dessas casas. O mesmo se passará com todos os nossos programas, onde se juntarão pessoas que estão presas, que já estiveram e outras pessoas da comunidade e aí é que a integração acontece.

Quando acha que tudo isto será uma realidade em Portugal?

Uma das coisas que aprendemos é que não podemos perder a visão futura e final, mas não podemos vender a totalidade da visão porque os decisores pensam a dois/quatro anos e estas mudanças não vão acontecer em quatro anos, por isso, temos de vender visões mais pequenas, passos intermédios. Neste momento, estamos a propor uma alteração legislativa, baseada na lei francesa, que é muito próxima da nossa, para que os dois últimos anos de pena possam ser cumpridos numa espécie de comunidades terapêuticas, como já existe para a questão das toxicodependências. Ainda por cima, tivemos a COVID-19 que para nós foi positivo no sentido em que houve uma libertação de quem faltava só dois anos e houve muito pouca reincidência, não houve mais crime por causa disso. Portanto foi a prova que estamos a prender demais. Quando mais cedo soltarmos, maior a probabilidade de sucesso a seguir. Portanto, juntando estes dois argumentos, acho que vai ser uma realidade em Portugal.

Qual é o vosso próximo sonho “intermédio”?

O próximo sonho é abrir uma casa de saída. É conseguir ter esta sexta dimensão da habitação. 

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