Sexta-feira, Abril 19, 2024

O “novo petróleo” que ajoelha a África do Sul

António Mateus, Jornalista

O roubo de cobre é uma prática quase tão antiga como a noção do valor daquele que foi o primeiro metal minerado e trabalhado pelo homem, mas nunca à actual escala, particularmente na África do Sul, ao ponto de estar a comprometer a economia mais industrializada e com melhores infraestruturas de todo o continente africano.

Só os “gigantes” sul-africanos de electricidade, Eskom, de telecomunicações, Telkom, e a ferroviária, Transnet, registaram perdas anuais de centenas de milhões de euros por roubos maciços de cablagens de cobre, o metal com maior eficácia na condução eléctrica (só batido nessa propriedade pela prata). Não menos grave é o impacto mutilador desses furtos sobre a capacidade operacional de empresas pilares da economia e da mobilidade de pessoas e bens, não só no país, mas em toda a África Austral.

Durante a sua apresentação do “Estado da Nação”, perante o Parlamento reunido na Cidade do Cabo, o presidente Cyril Ramaphosa vincou que o roubo de cablagens, perturbações de locais de construção e ocupações de terras prejudicam a actividade económica e desencorajam o investimento no país quando este atravessa um quadro recessivo e é forçado a desviar recursos públicos para reposição das infraestruturas vandalizadas em prejuízo da criação de condições de apoio aos mais desfavorecidos.

Ramaphosa reiterou a instrução às autoridades policiais e judiciais sul-africanas de intensificarem o combate a todas as actividades ilícitas danosas à economia sul-africana, uma medida que já fora traduzida na gravidade de penas atribuídas em julgamentos concluídos este ano, de casos de furto de cabos de cobre; só num deles, o Tribunal Regional de Kroonstad atribuiu penas cumulativas de 224 anos de prisão a três acusados de roubo de cabos de cobre, em infraestruturas da Eskom, num processo onde as investigações foram conduzidas por uma empresa privada contratada para o efeito pela fornecedora eléctrica sul-africana.

Três meses antes, o Tribunal Supremo da Cidade do Cabo atribuiu penas cumulativas de 1.250 anos a réus dados como culpados em 50 casos de roubo, cometidos nas regiões de Namaqualand e do Cabo Ocidental, em infraestruturas da Eskom e da Telkom, uma sentença recebida na altura com esperança pela chefe de segurança da Eskom, Karen Pillay.

“Esperemos que esta sentenças pesadas transmitam uma mensagem forte a todos os potenciais ladrões de se absterem de escolher como as cablagens suspensas e subterrâneas da Eskom. Trabalharemos sem hesitações e incansavelmente com todas as partes interessadas e organismos judiciais e policiais para assegurar que todos os ladrões envolvidos em crimes sobre infraestruturas essenciais enfrentam toda a força da lei!”, augurou a responsável da empresa que só em 2019 já gastara mais de dois mil milhões de grandes (cerca de 118,5 milhões de euros) a repor cablagens de cobre roubadas.

Mas do outro lado da mesa fala mais alto, para muitos, a escalada da procura do cobre nos mercados internacionais (decorrente da opção da energia eléctrica em prejuízo da fóssil) que já ultrapassa a capacidade de mineração e produção deste metal, tornando particularmente rentável o recurso a fontes recicladas, sejam elas legais ou de origem criminosa.

E se dúvidas houvesse sobre a factura desta última, no relatório anual de 2020 da cidade índica de Durban, um dos dois principais eixos de escoamento ferro-portuário do país e da sub-região – só ultrapassado pela Cidade do Cabo – alerta-se que “a África do Sul enfrenta um grande problema com o roubo de cobre” e que este tem “impacto negativo sobre todos os cidadãos”. Adianta ainda que “o negócio da venda de sucata tornou-se muito lucrativo, com negociantes sem escrúpulos a comprarem cobre sem levantar questões” e que o cobre roubado é depois exportado para países como a China e a Índia.

Bank of America alerta que o “cobre pode esgotar”

A tendência de escalada do preço do cobre nos mercados internacionais é tal que foi mesmo descrito como “o novo petróleo” por David Neuhauser, fundador e director do fundo de investimento norte-americano Livermore Partners, em declarações à cadeia televisão CNBC. Perante o disparo da procura e o dreno das reservas disponíveis, o Bank Of America alerta que “o cobre pode esgotar” e duplicar de custo, até 2025, ultrapassando a marca doa 20 mil dólares por tonelada métrica.

E no país de Nelson Mandela, a maior rede infaestrutural do continente africano, financiada no último século pelas receitas fiscais dos sectores mineiro, industrial e agrícola está a revelar-se um “El Dorado” para os traficantes internacionais e quem os abastece.

O Instituto de Estudos de Segurança, de Pretória, identifica evidências de os compradores estrangeiros – entre os quais tríades chinesas e outros grupos asiáticos – estarem agora a contornar os sucateiros sul-africanos em reação ao reforço do escrutínio destes pelas autoridades.

“Um sindicato paquistanês, com endereço em Hillbrow (bairro “complicado” de Joanesburgo) tem usado contentores em áreas desertificadas como pontos de despejo de cobre roubado”, identifica o “paper” do ISS. ”Estes contentores são depois conduzidos para Durban e dali embarcados para o exterior com documentação aduaneira forjada”.

“O preço consistentemente elevado do cobre torna-o um bem valioso para o negócio ilícito. Os ladrões são analistas de mercado sofisticados que decidem quando o preço do cobre atingiu um tal valor que o roubo deste produto em particular é mais compensador (na relação risco/preço) do que qualquer outro. O cobre está acessível um pouco por todo o lado, desprotegido e como tal fácil de roubar dada a extensão das redes da Transnet, da Eskom e da Telkom”.

Os investigadores do ISS avançam que um quarto grupo potencialmente beneficiário do roubo de cobre poderá ser a indústria de segurança privada, por ter mais interesse na manutenção do problema do que na resolução do mesmo.

“Algumas receberam, grandes contractos para combater o roubo de cobre e proteger infraestruturas do Estado, mas até aqui há poucos sinais da sua eficácia”, sublinha. “É útil (neste domínio) comparar as estatísticas de perdas da Transnet e da Telkom, que contrataram empresas privadas de segurança, com as da Eskom, que mudou recentemente para um ataque ao problema com meios próprios”.

Uma sucessão de reportagens sobre este tema do reconhecidamente credível media sul-africano “Daily Maverik”, deixaram a nú a forma como se processou (e ainda decorre) a vaga de pilhagens e vandalismo que atingiu a rede ferroviária sul-africana e o grau de devastação por ela provocado, com especial incidência durante os períodos de confinamento devido à pandemia do novo coronavírus.

A acrescer ao roubo de centenas de quilómetros de cabos de cobre (e até de segmentos de carris) ao longo da rede ferroviária e, em particular, nas estações, a escala do vandalismo nestas evidente, reduziu-as a um cenário de ruína e devastação.

No Cabo Ocidental, pilhagens e vandalismo levaram à redução desde 2019 de 444 para 151 dos serviços ferroviários diários, num quadro de complexidade agravada na província pela ocupação das estações de Langa e Phillipi por migrantes despejados de localidades próximas por falta de pagamento de rendas durante o confinamento devido à pandemia. Estações onde roubaram todo o tipo de bens transacionáveis, incluindo cablagens e equipamentos electrónicos de sinalização, provocando o corte temporário de todas as ligações ferroviárias entre o centro da Cidade do Cabo e as localidades satélites de Khayelitsha e Mitchels Plain.

Estações de comboios transformadas em cenários de explosão

Já em Gauteng, envolvente de Joanesburgo e Pretória e que constitui o coração financeiro do país, as pilhagens deixaram operacionais apenas três das 17 linhas ferroviárias da província. Equipas do Daily Maverik destacadas em reportagem para 20 estações de comboios e rotas ferroviárias de ligação entre Joanesburgo e as localidades periféricas, testemunharam pilhagens contínuas, dia e noite, incluindo em locais onde aquele meio de transporte público, consideravelmente mais barato do que o rodoviário, é crucial para o acesso das franjas mais pobres da população aos respectivos locais de trabalho no centro urbano.

Em resposta a interpelações parlamentares, a transportadora ferroviária sul-africana reportou a ocorrência de 1.833 incidentes de vandalismo em estações de Gauteng durante os últimos três anos e que a reposição de património essencial roubado ronde os dois mil milhões de grandes. Isto sem quantificar os estragos causados pelos ladrões em pavimentos e paredes durante a escavação de cabos subterrâneos, o arrancamento e roubo de bancos para os utentes, iluminação, equipamentos sanitários, coberturas, janelas, portas e respectivas ombreiras. Anteriormente fervilhantes de movimento, Germiston, Old Ben Rose, George Goch, Kliptown e Chiawelo parecem ter sido atingidas por uma explosão após serem assoladas por sucessivas vagas de pilhagens e actos de vandalismo.

Para se ter uma ideia da dimensão da rede em causa, só a malha ferroviária de Gauteng envolve um total de 1.380 quilómetros de carris, ligando 218 estações e apeadeiros. De um lado, três mil guardas contratados para a respectiva vigilância. Do outro, sindicatos de crime motivados pela escalada da procura e do preço do cobre à escala mundial, a ineficácia das medidas adoptadas de combate ao roubo e contrabando e uma corrupção cada vez mais sistémica.

E se a tendência de subida dos preços do cobre já era considerável, pelos motivos atrás referidos, a crise energética em agravamento à escala mundial veio reforçar essa trajectória, com os metais industriais – do zinco ao alumínio – a cavalgarem receios do impacto daquela sobre a produção.

Igualmente “acessível”, e como tal interceptada pelos sindicatos de crime organizado, é a canalização por estrada de cobre minerado no interior de África. Durante o trânsito para os diversos portos da África Austral, só entre Janeiro e Maio deste ano, foram roubados à mão armada 66 camiões, a esmagadora maioria em estradas sul-africanas. Sendo que cada camião transporta entre 32 e 34 toneladas de cátodo de cobre (minerado na Zâmbia e no Congo) o valor da carga roubada representa aos preços actuais algo próximo de 21 milhões de dólares.

Tal como procedem no caso do cobre roubado à Eskom, Telkom e Transnet, o metal é derretido para suprimir os números de série e outras marcas de propriedade, transformado em lingotes ou grânulos e colocado nos circuitos comerciais, com efeitos também penalizadores dos sucateiros cumpridores da lei, muitos dos quais estão a ser forçados a fechar portas por falência.

Evert Swanepoel, presidente da Copper Development Association Africa (CDAA), representativa dos produtores que utilizam cobre reciclado, alerta que o número de associados da organização foi reduzido a quase metade nos últimos quatro anos, com perdas de milhares de postos de trabalho; “se não se fizer nada em breve a indústria está condenada”, avisou.

E se o desnível em agravamento entre a procura e a oferta de cobre, traduzido na escalada do respectivo valor à escala mundial, está a ser uma boa notícia, em termos de receitas de exportação, para o Chile e o Perú, principais produtores mundiais deste metal, a factura deixada em países como a África do Sul, principais alvos dos sindicatos de crime organizado, para roubo deste metal, não só compromete o relançamento pós-covil 19, como ameaça fazer ajoelhar as respectivas economias e as delas interdependentes.

Actualmente há cerca de 250 minas de cobre operacionais em quatro dezenas de países, com uma produção global estimada (pela US Geological Survey) de 20 milhões de toneladas, ou seja, 30 por cento mais do que há 10 anos.

A Agência Internacional de Energia (AIE) estima que ao actual ritmo de electrificação, empurrado pelas aplicações de “energia limpa”, a procura mundial de cobre duplique nos próximos vinte anos, o que representaria o esgotar das reservas mundiais (estimadas em cerca 870 milhões de toneladas, um quarto das quais no Chile) num horizonte de pouco mais de 20 anos.

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