Sexta-feira, Abril 26, 2024

Maior idade

António Figueira, Administrador Comité Económico e Social Europeu

Glória aos sábios loucos, que têm a coragem de pregar no deserto e ter razão antes de tempo!

Dezoito anos são muitos, a maioridade de uma pessoa. Mas podem não ser nada: as idades da Terra contam-se por milhões e milhões de anos e, nessa escala, dezoito primaveras são uma infimíssima fração. A atual idade da Terra é o Antropoceno, a idade em que o homem molda a Terra (para pior, já se sabe), mas há dezoito anos parece que isso ainda não se sabia, era só para meia-dúzia de sábios loucos. Glória aos sábios loucos, que têm a coragem de pregar no deserto e ter razão antes de tempo!

Que alguém pegue num jornal de há dezoito anos e o compare com um jornal de hoje: hoje, a crise climática está por toda a parte, em todo o lado há finalmente noção que é preciso agir com urgência para salvar a Terra, há promessas universais de ‘green deals’ – e há dezoito anos, nem uma palavra sobre o clima, parece que vivíamos literalmente noutro planeta… Afinal, dezoito anos, são muito ou pouco tempo – conta o tempo que efetivamente passa ou a impressão que ele nos deixa ao passar?

Para os mais jovens, recorda-se que a “Verdade Inconveniente”, de Al Gore – indiscutivelmente o alerta que acordou o mundo para a crise que define a nossa época, sem dúvida um dos grandes manifestos da história da humanidade – tem apenas quinze anos: quando foi dado a conhecer, em 2006, Greta Thunberg tinha apenas três anos de idade… E para os mais esquecidos, recorde-se também que Al Gore veio a Portugal logo em fevereiro de 2007, apresentar a sua “Verdade”, a convite da agência de comunicação que agora comemora a sua maioridade…

Por próximo que nos pareça 2003 – o ano que aqui se assinala, não só por ser o do nascimento de Greta, como por ser o da criação da CV&A – ele pertence já a uma outra era, que decorreu sob um outro paradigma. Em 2003, existiam conflitos tal como hoje, tanto no interior das sociedades como na ordem internacional; modificaram-se, certamente, apresentam-se de outra forma, com outros atores, noutras correlações de forças, mas permanecem uma parte essencial da paisagem. Em 2003, também existiam disquetes, telefaxes, Blackberries… – que hoje vão a caminho dos museus, porque a inovação tecnológica prosseguiu, e sempre em aceleração constante – mas o que temos hoje é mais do mesmo, chaves USB, e-mails, iPhones, não é isso que faz verdadeiramente a diferença.

O que é realmente distinto, novo, transformador, é a generalização – e ao mesmo tempo a interiorização, nas consciências individuais – da ideia dos limites do nosso modelo económico, da sua insustentabilidade, da sua finitude essencial, deixada à vista pela crise climática e pela pandemia do Covid-19. A humanidade como que redescobriu a sua fragilidade – e é obvio que esta epifania não teve consequências apenas nas altas esferas da filosofia, veio interferir muito direta e concretamente na vida das pessoas e das sociedades: não apenas porque as alterações climáticas têm custos colossais e as pandemias igualmente, como todos bem sabemos, como porque tudo – literalmente tudo – a partir de agora, tem de ser pensado em função dessa tomada de consciência e no quadro desse paradigma novo.

Tome-se o exemplo da circulação de pessoas: seja por causa da concomitante circulação de vírus, seja por causa dos custos ambientais do transporte aéreo, parece claro que as viagens internacionais por via aérea não vão estar em alta no futuro. O fim desses hábitos simples, ao alcance da classe média europeia, do turismo de fim-de-semana numa capital estrangeira, ou da semana de férias num destino ao sol, vão impactar duradouramente aviação e turismo, e tudo quanto estiver a montante e a jusante desses sectores. Mas mais, muito mais: vai afetar a deslocalização produtiva, aumentar a tendência para a sua renacionalização (ou “reeuropeização”, no caso da EU) e operar uma espécie de “desglobalização” limitada e interferir na questão maior das relações económicas internacionais (e das relações internacionais ‘tout court’) do século XXI que é a das relações do Ocidente com a China.

Todos os projetos de digitalização da economia têm uma pura dimensão competitiva, está claro, impedir que o concorrente nos passe à frente – mas têm também o clima como pano de fundo, a ideia, não já de encurtar, mas de suprimir a distância, e com isso eliminar deslocações, contaminações, transportes, emissões de CO2… E-comércio, teletrabalho… em 2003 praticamente não se falavam, hoje estão por toda a parte, já todos os experimentámos – e a tendência é evidentemente para crescerem, e não o inverso.

A “sustentabilidade” já se tornou cliché há uns anos, a palavra que se segue é “resiliência”; copiamo-la do inglês (embora ela já existisse nos nossos dicionários, com um significado mais limitado, os engenheiros sabem disso), mas ainda bem que a copiamos – se for não só o nome, mas também a coisa. É preciso ter presente os constrangimentos que a natureza (incluindo a natureza humana) coloca ao desenvolvimento económico – porque, evidentemente, é a economia que deve servir a humanidade e não esta que lhe deve prestar tributo. E ter a ousadia de perscrutar o grande mundo das ideias aparentemente inúteis e inconvenientes, e não temer ter razão antes de tempo nem remar contra a maré. São tantas verdades que temos por adquiridas que vão parar ao caixote do lixo da história!

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

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