Sexta-feira, Março 29, 2024

Absoluta estabilidade

Diogo Queiroz de Andrade

Uma maioria absoluta inesperada, um partido extremista a crescer e várias forças históricas em crise acentuada. Mudou quase tudo no cenário político-partidário nacional, excepto o chefe de Governo. António Costa vai chefiar o PS durante quatro anos sem contestação aparente, sentado numa bazuca oferecida por Bruxelas.

A garantia de governação por quatro anos abre caminhos de tranquilidade inesperados, mas também permite perceber de onde virá a contestação. Vale por isso a pena olhar detalhadamente para os resultados de 30 de Janeiro, procurando pistas para o futuro.

A primeira conclusão a retirar é que Portugal se mantém mais ou menos imune às tendências que se vêem no resto da Europa. Desde logo porque os dois maiores partidos revelam uma extraordinária resistência ao desgaste, algo que é quase inédito em todo o continente. E para tal basta ver que entre as duas grandes forças do espectro político se congregam quase 70% dos votos expressos. Uma consequência disto é a quase inexistência dos partidos monocausais, cumprindo Portugal mais uma raridade europeia de não ter um partido ecologista relevante. Quando na Europa surgem movimentos cada vez mais relevantes que se distinguem por uma causa principal como o ambiente, a tecnologia ou o federalismo, Portugal continua a recompor o espectro partidário a partir da referência esquerda e direita, demonstrando que o ponto de equilíbrio está num eleitorado flutuante que escolhe quem oferece soluções mais confiáveis. E, por isso mesmo, estas eleições voltam a confirmar que as vitórias se fazem ao centro: o PSD não perdeu porque a esquerda se uniu à volta do PS, perdeu porque não conseguiu convencer os eleitores do centro a apostar na alternativa. Já a originalidade de não ter um partido anti-sistema com peso no parlamento, essa, desapareceu com estrondo graças aos 12 deputados do Chega.

Mas a análise dos números diz muito mais do que isto. E acima de tudo abre pistas para o futuro do ciclo eleitoral que, agora, se sabe que será de quatro anos. A estabilidade da maioria absoluta será desafiada nas ruas com o PCP a reactivar os sindicatos, no Parlamento com a direita a disputar espaço e nos média com o Chega a gritar mais alto que todos os outros. Em 2026 se verá quem desafiou melhor.

A esquerda

A grande vitória do PS de António Costa explica-se por ter feito o pleno: congregou os votos à sua esquerda e agarrou o eleitorado do centro de forma extremamente eficiente. Ao centro terá ajudado a boa gestão da pandemia, à esquerda funcionou o discurso de vitimização com o chumbo do orçamento. Costa espremeu o eleitorado do Bloco e da CDU graças a uma estratégia firme a que os partidos mais à esquerda não conseguiram responder, tendo ficado estes com o ónus de responsáveis pela crise governativa e eleições antecipadas. Isso levou a uma óbvia transferência de votos do BE e da CDU para os socialistas, e Setúbal é um distrito exemplar: O PS teve mais 45 mil votos, sendo que o BE perdeu 23 mil votos (metade dos que recebeu em 2019) e a CDU outros 21 mil. O CDS também perdeu 7.000 votos e a participação aumentou 38 mil votos, o que ajuda a explicar o crescimento do PSD, da IL do Chega. Há aqui outras forças em jogo, mas o apelo gravitacional do PS à sua esquerda é por demais evidente num distrito que era até agora um confortável porto de abrigo para os dois partidos que em conjunto perderam quase cinquenta mil votos (Figura 2).

Figura 1

Figura 2

A queda comunista pode ter sido abrupta, mas não se pode dizer que tenha sido inesperada. Este foi apenas o acelerar de uma decadência que se tem sentido de forma mais clara na última década, com reflexos evidentes em todos os processos eleitorais – sendo que nas autárquicas o efeito tem sido mais ligeiro, mas mesmo aí a tendência é notória. Os eleitores da CDU estão a desaparecer e a renovação do discurso não se fez, pelo que a base de apoio se está a reduzir sem que se veja forma de a recuperar. Aos comunistas resta, como de costume, a rua. O seu braço sindical vai voltar a criar problemas com manifestações e greves, para dar prova de vida do partido. Mas nem isso irá abalar o inexorável envelhecimento de um partido que já quase não bate certo com o país – e ainda menos com a Europa, onde é o último resistente da visão leninista de um mundo que também já desapareceu.

O caso do BE é também curioso. A falta de capacidade para se implementar no terreno autárquico, um programa anacrónico e a dependência do voto jovem (que é menos fiel) criaram problemas quando foi preciso justificar a queda do governo socialista. Os resultados confirmam que a mensagem de diferenciação não funcionou, pelo que a crise é inevitável. A pergunta que fica é se o Livre de Rui Tavares vai conseguir captar o eleitorado jovem e urbano que tanto sustentou o Bloco. Certamente que a agenda do Livre (ambiental, europeísta, moderada) bate melhor com a base de apoio bloquista do que o discurso de Catarina Martins. Mas, convém notar, não é a primeira vez que o BE recupera de um descalabro político, até porque é sabido que o partido inclui algumas das vozes mais reconhecidas à esquerda, como Mariana Mortágua e Marisa Matias. A ansiedade de Rui Tavares em colaborar com o governo pode ainda limitar o seu crescimento, tornando-o eventualmente na próxima vítima do abraço do urso socialista. O facto é que à esquerda do PS existe uma fatia relevante de mais de meio milhão de eleitores, à qual se somarão mais alguns desencantados com a maioria absoluta – e isso fará da recomposição desta faixa do espectro partidário um dos temas a que vale a pena prestar atenção nesta legislatura.

A direita

Claro que a derrota eleitoral do PSD é o principal facto a assinalar, mas comecemos pelo outro acontecimento digno de nota: a efectiva substituição do CDS pela Iniciativa Liberal como partido da ala direita do sistema político. A transferência de votos entre os dois partidos foi directa e vale a pena olhar para Viana do Castelo, um distrito exemplar nesta movimentação (Figura 3): os 3.300 votos que o CDS perdeu terão ido na sua imensa maioria para a IL (que cresceu praticamente 3.000 votos). Claro que há um grau de complexidade que extravaza leituras que implicam transferência directa de votos, mas é impossível não ver a correlação entre a descida de um e a subida de outro.

Figura 3

O outro ponto relevante da votação da IL é que a sua base de apoio é essencialmente litoral, urbana, mais jovem, mais educada e mais rica. Se é certo que este é o Portugal do século XXI, também fica por confirmar se a novidade terá capacidade para se estabelecer como alternativa estável e duradoura. E isto interessa sobremaneira a quem herdar o comatoso CDS, até porque o seu eventual renascimento depende de um factor externo: só haverá espaço para ele se a IL não for capaz de manter o eleitorado que agora conquistou. Mas a boa campanha e a preparação do grupo parlamentar eleito deve ser suficiente para garantir estabilidade à IL durante os próximos quatro anos.

Mesmo com tão fraco resultado dos centristas, o método de Hondt confirma que os votos do CDS somados ao do PSD teriam sido suficientes para impedir a maioria absoluta socialista – sendo que uma aliança entre os dois históricos da direita teria também permitido ao CDS continuar (mais ou menos) vivo. Foi este o primeiro erro do PSD, um partido que até cresceu 80 mil votos mas não conseguiu evitar a derrota. Os sociais-democratas ficaram entalados entre a concentração de voto à esquerda e a incapacidade para conter o crescimento da nova direita. Os outros dois erros que se apontam ao partido prendem-se com a falta de clareza no discurso. Uma das falhas terá sido embarcar exclusivamente na discussão da economia – alinhando com a bolha mediática que limitou o debate. A incapacidade de incluir nas discussões temas como o ambiente, a Europa ou a cultura limitaram o apelo do partido às questões económicas, área onde a Iniciativa Liberal tinha já conquistado muito espaço (contando para isso com o beneplácito de vários sociais-democratas) – e acabando assim por oferecer ao PS o voto de quem tinha outras preocupações e procurava um partido centrista. Esta má ocupação do espaço público ficou ainda mais exposta com a falta de clareza sobre o Chega e as suas bandeiras. Para tentar aliciar eleitorado descontente, Rui Rio ainda pegou no tema da justiça promovido pelo líder do partido extremista, mas fê-lo sem traçar linhas claras na recusa de diálogo com o Chega. Esta indecisão é tanto mais estranha quanto se sabe, pelos muitos exemplos em todo o mundo, que estes partidos anti-sistema crescem depressa quando lhes é reconhecido estatuto pelos ocupantes tradicionais do espaço partidário. E o Chega lucrou muito com a participação na solução governativa dos Açores, que levou à falta de clareza de Rio – e à adesão de muitos ao PS para garantir que os extremistas nunca chegariam ao poder.

Este lado do parlamento ficará portanto repartido: um PSD que naturalmente ocupa o espaço do centro-direita; e uma IL que representa uma visão liberal da sociedade mas reúne também uma série de eleitores da direita mais tradicional (que se distinguem por não terem nada de liberal para lá da economia). O PSD terá de recuperar uma visão reformista da sociedade que perdeu nos últimos tempos de forma a conseguir liderar a oposição. Aliás, basta ver que os dois políticos de maior sucesso dos sociais-democratas são Marcelo Rebelo de Sousa e Carlos Moedas, ambos homens que construíram a sua carreira dando grande importância a esferas que não se limitaram à visão economicista da sociedade.

Figura 4

Os outros

O quase extermínio do PAN demonstra que em Portugal é difícil manter um partido de uma causa só. E fica ainda mais claro que o eleitorado nacional não quer saber do tema ambiental: a questão não ocupou um milímetro nos debates públicos, os partidos não têm propriamente o ambiente no topo das suas prioridades e só Rui Tavares se esforçou por falar do tema. Os só de nome Verdes, mera excrescência do PCP, não entram nesta contabilidade a não ser para referir que perderam a representação parlamentar que mantinham há quarenta anos.

O elefante na sala da democracia chama-se Chega e o seu crescimento foi uma das notas de destaque da noite eleitoral. Passar a ser a terceira força política e subir para 12 deputados é sempre uma vitória relevante, o que aumenta o interesse em ver até que ponto é que a aparente indigência do seu grupo parlamentar consegue corresponde aos anseios de quem neles votou. O líder do Chega e restantes apaniguados bem podem clamar que o seu partido é de direita, mas a verdade é que não é isso que dizem os resultados: os votos no Chega vêm de uma amálgama que junta direita mais tradicional a eleitores abandonados pelo PCP e muitos outros que vieram da abstenção. Os votos no partido do verbo são essencialmente de concelhos empobrecidos e envelhecidos, como se pode ver bem no exemplo de Portalegre: Em comparação com as legislativas de 2019, e fazendo alguns arredondamentos (Figura 4), entraram aproximadamente mais 1.500 votos em urna. PS e PSD tiveram cada um mais 2.000 votos e a IL mais 900; o BE menos 2.600, o CDS menos 1.300, e o PC menos 1.400. Já o Chega cresceu 4.700 votos, que terão forçosamente de ter vindo de um misto de ex-abstencionistas, antigos votantes do CDS e do PC.

Esta diversidade na base de apoio confirma o Chega como partido anti-sistema. Será impossível satisfazer a amálgama ideológica que o sustenta, pelo que apenas poderá convergir no extremismo com que se aproveita do modelo democrático que afirma querer destruir. O que é óbvio é que o Chega foi mesmo o melhor amigo do PS: roubou votos à direita e à esquerda e motivou outros tantos a colocarem a cruz na maioria absoluta de António Costa – que, se quiser agradecer a alguém, deve fazê-lo ao líder do partido extremista. Mas a extraordinária mobilização no PS confirma que não há em Portugal vontade nem espaço para que o Chega alguma vez chegue… ao poder. E essa será a lição mais importante a retirar destas legislativas. A espessura do cordão sanitário político-mediático que se vai colocar à volta dos extremistas é outra das questões em aberto para os próximos quatro anos. 

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