As eleições presidenciais francesas são geralmente férteis em surpresas, definindo-se apenas na segunda volta. O escrutínio de Abril, com Emmanuel Macron a recandidatar-se a um novo mandato no Palácio do Eliseu, não será diferente, como bem explica uma análise da Bloomberg que aqui citamos. Inicialmente, pensou-se que este escrutínio seria um ‘deja vu’ de 2017, quando Macron venceu sem dificuldade a nacionalista de extrema-direita Marine Le Pen, segurando o centro com o seu novo partido, En Marche! Mas o aparecimento de candidatos adicionais à direita tornou a corrida mais complicada. A campanha promete.
1. Espera-se uma vitória de Macron?
Em princípio, sim, mas não é garantido. Interpretar sondagens numa eleição tão disputada e a duas voltas é, muitas vezes, um exercício artístico. Para além de Le Pen, os adversários de Macron são Valérie Pécresse, do Partido Republicano, de direita, e o Pundut, da extrema-direita de Eric Zemmour. No início de 2022, a maioria das projecções dava Macron a derrotar qualquer candidato de direita. Mas devemos ter em conta que as sondagens estão a apontar para as intenções de voto na primeira volta, a 10 de Abril, só que o resultado final é o que irá sair do embate entre os dois candidatos à segunda volta, que se realiza 14 dias depois. Se vencer, Macron será o primeiro presidente em funções a ser reeleito desde Jacques Chirac, já lá vão 20 anos.
2. Em que ponto estamos?
Macron tem estado focado em temas como segurança, imigração e identidade nacional, procurando assim “apoderar-se” de temas tradicionalmente mais caros à direita política. Este discurso funciona também como “escudo protector” contra os candidatos de extrema-direita, que, de acordo com as sondagens, poderão vir a ter nestas eleições o melhor resultado de sempre, numa altura em que os partidos de esquerda estão na luta por, pelo menos, 10% das intenções de voto, sem que consigam encontrar, sequer, um candidato comum, enquanto insistem nas causas habituais, como a igualdade e as alterações climáticas.
3. Qual o papel da economia e a pandemia estão a desempenhar?
As ajudas de Estado às famílias e às empresas ao longo da pandemia agravaram a despesa e a dívida públicas, mas os indicadores económicos são positivos.
A aposta de Macron e do seu antecessor na reforma laboral e fiscal parece estar a produzir resultados, com o desemprego em baixa e a confiança na economia a alimentarem a moral dos franceses. Mantendo-se este desempenho, será um marco histórico, ao permitir que a França deixe de ser vista como um dos problemas económicos da União Europeia, incapaz de acompanhar a globalização, de crescer e de criar empregos como o seu vizinho, a Alemanha. No entanto, a redução da tributação às empresas e grandes fortunas, o declínio dos serviços públicos nas zonas rurais e o impacto da alta dos preços da energia sobre as famílias podem vir a alimentar movimentos contestatários populares do género dos “Coletes Amarelos”.
4. Por que motivo a esquerda já não tem a força que tinha?
O Partido Socialista “deu” dois presidentes a França nos últimos 60 anos, mas tem vindo a perder influência junto dos trabalhadores, que foram a sua grande base de apoio. Em 2017, com a conquista por Macron de um lugar no centro político, muitos dos seus apoiantes mais à esquerda optaram por abandoná-lo.
Agora, pelo menos Jean-Luc Melenchon’s, do Partido França Insubmissa, e Yannick Jadot, dos Verdes, procuram impor-se como líderes da esquerda no país, e nem eles nem o Partido Socialista estão disponíveis para pôr de lado as divergências e unir-se em torno de um candidato comum, capaz de recolher o número de votos suficiente para passar à segunda volta.
Depois, há o tema da demografia: os cidadãos mais velhos são os que mais votam, mas são sobretudo conservadores. Juntos, Le Pen, Zemmour e Pécresse recolhem 46% das intenções de voto na primeira volta, de acordo com as sondagens.
5. O “Macronismo” existe?´
É difícil encontrar um “rótulo” político para o antigo banqueiro de investimento que iniciou a sua carreira na vida pública como socialista. Como responsável das Finanças no governo do seu antecessor, François Hollande, surgiu como um liberal económico. A sua vitória presidencial foi possível apenas porque muitos eleitores socialistas se descolaram do partido. Na campanha, Macron falou sobre a luta contra a desigualdade, designou a colonização francesa da Argélia como um crime contra a humanidade, e disse não se opor ao uso de véu pelas mulheres muçulmanas em espaços públicos, temas que causam indignação na extrema-direita.
Por outro lado, eliminou um imposto, ainda que simbólico, que havia sobre a riqueza, algo que os presidentes de direita não tinham sido capazes de fazer antes dele, e apelou aos franceses para que se reformassem mais tarde.
Teve dois primeiros-ministros de direita, assim como os titulares das Finanças e da Economia, e o ministro do Interior é um radical, que criticou as cadeias de supermercados por armazenarem alimentos estrangeiros, e acusou Le Pen de ser brando com o islamismo.
6. Macron passou a ser de extrema-direita?
Na verdade, tem adaptado o discurso às circunstâncias, ou ao sabor da opinião pública. Perante sondagens que indicam que os franceses preferem tendencialmente candidatos à direita, a retórica de Macron passa por prometer combater a criminalidade e o tráfico de droga, e por lançar um “grande debate nacional” sobre o consumo de drogas.
Pressionado a responder aos actos terroristas verificados no decurso do seu mandato, incluindo a decapitação de um professor em 2020, fez aprovar uma Lei de Segurança Global que pouco contribuiu para alterar a cultura de violência da polícia, apesar dos apelos à sua fiscalização e responsabilização.
Também fez aprovar legislação para preservar os valores seculares franceses, considerada, entre alguma esquerda política, como estigmatizante em relação aos muçulmanos.
Em simultâneo, a promessa de utilizar o dinheiro dos contribuintes para segurar empregos e vidas humanas durante a pandemia, “custe o que custar”, voltou a esbater a linha com a direita.
Também alargou a licença de paternidade e criticou a erosão dos salários e das condições de trabalho na União Europeia – ambas causas da esquerda.
7. Como funciona a votação?
Se ninguém recolher mais de 50% dos votos na primeira volta – Charles de Gaulle foi o último a consegui-lo, em 1958 -, os eleitores regressam às urnas duas semanas depois para escolherem entre os dois candidatos mais votados.
O sistema pode levar ao chamado voto táctico, em que os eleitores não apoiam aquele que foi o candidato preferido na primeira volta, optando por aquele que tem mais hipóteses de derrotar o candidato de que menos gostam. Por exemplo, os eleitores de extrema-esquerda que se sentem traídos por Macron, e que em princípio apoiariam um candidato como Jadot, podem sentir-se tentados a votar Pécresse na primeira volta, pois esta está à frente daquele nas sondagens e tem mais hipótese de derrotar Macron numa segunda volta. Esta abordagem táctica pode retirar apoio a candidatos que, de outra forma, poderiam ter mais chances na corrida.
8. O que mais devemos ter em conta?
As legislativas de 12 e 19 de Junho não devem ser desvalorizadas. Se o novo presidente não tiver maioria absoluta na Assembleia Nacional, ficará de mãos atadas e poderá ter um primeiro-ministro de outra facção, algo que ocorreu nos anos 80 e 90. O partido de Macron revelou recentemente alguma fraqueza, com as sondagens a mostrarem resultados fracos nas eleições regionais e municipais. Por isso, mesmo que seja reeleito, não é certo que Macron consiga levar por diante as suas políticas.
9. Em que contribui tudo isto para a posição de França no mundo?
Macron deu mais visibilidade a França como ‘player’ global, apesar de alguns revezes. A tentativa de explicar a sua visão do papel da religião na sociedade incendiou os ânimos no mundo islâmico, e sua declaração de que a NATO está em “morte cerebral” enfureceu alguns aliados, especialmente na Europa de Leste.
Manteve audível a voz do país na política internacional, que é sobredimensionada em relação ao peso da sua economia, em grande parte devido aos laços históricos com as ex-colónias.
Praticamente todos os candidatos querem reformar a União Europeia. Pécresse tem uma posição ambígua neste capítulo, mas é pouco provável que, se vencer as eleições, as suas políticas internacionais divirjam muito das do actual inquilino do Palácio do Eliseu.