Quinta-feira, Abril 18, 2024

A Alemanha depois de Merkel

Diogo Queiroz de Andrade

Não vale a pena esperar grandes mudanças do novo governo alemão. As palavras de ordem continuam a ser racionalismo e sobriedade, que se traduzem na prioridade ao comércio.

Um novo governo em Berlim inspira sempre quem procura pistas para a dimensão do compromisso europeu, para perceber se a Alemanha quer somar o motor político da União ao motor económico. E muitos ficaram chocados por encontrarem no programa de governo referências à evolução da União para um “estado federal”. Mas este terá mesmo sido um caso de subtileza perdida na tradução. Como explicou Michael Meyer-Resende, director da Democracy Reporting International: “Quando a maioria dos alemães ouve estado federal, o ênfase está na segunda palavra, mas para o resto dos europeus a importância está na primeira palavra que assusta todos os que não querem reforçar os poderes de Bruxelas.

Muitos analistas apontaram para maior convergência com a União nos temas mais consensuais, como o desafio ambiental e a defesa da democracia e dos direitos humanos fora e dentro da UE. Mas a ameaça de uma guerra na Ucrânia rapidamente demonstrou quão longe das ambições europeias está Berlim. Os diplomatas da capital alemã não querem contribuir para aumentar tensões com o vizinho russo, exercendo uma cautela extrema até em permitir que Bruxelas exerça a sua força económica para limitar as ambições de Vladimir Putin.

A ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, pode ser o rosto em quem muitos progressistas colocam a esperança, mas ela é também a fiel executora de uma Alemanha bastante conservadora na dimensão externa. Todas as pesquisas de opinião apontam para uma recusa absoluta de conflitos armados e para a crença na bondade das transações económicas como o zénite do equilíbrio internacional. A Alemanha moderna vê “o poder militar não só como algo negativo, mas também inútil”, como repete Marcel Dirsus, um analista de defesa especializado na política externa alemã. Os alemães consideram efectivamente a sua posição anti-guerra como sendo moralmente superior à alternativa apontando para o próprio exemplo histórico como referência. E depois há a questão de que em Berlim o pragmatismo determina que o sucesso depende sempre dos objectivos comerciais de curto prazo. É isso que explica a importância do gasoduto NordStream2 e a recusa em incluí-lo nos pacotes de possíveis sanções a Moscovo (o que explica também o pragmatismo e a dependência face a uma China cada vez mais antagonista do ocidente). O novo chanceler Olaf Scholz é um fruto do sistema político alemão tecnocrata e focado no equilíbrio de poderes e de interesses, que vem do mesmo partido que deu um ex-chanceler à gigante russa Gazprom.

E os Verdes alemães têm preocupações maiores: a transição social para um modelo de sociedade mais ecológico está na base do seu programa e é promessa original do seu contrato com os eleitores. Entra aqui em jogo a outra parte da liderança bicéfala dos verdes, Robert Habeck, que lidera o todo-poderoso ministério da economia e clima. A sua missão é tudo menos simples: garantir que a indústria alemã se reconverte para a economia verde sem investimentos públicos massivos e sem perda de empregos nem agitação social. É uma quadratura do círculo quase impossível de fazer, mas uma que está a ser seguida atentamente em todo o mundo.

Do outro lado da coligação estão os liberais alemães, que apostam na modernização da economia alemã. Christian Lindner, novo ministro das Finanças, quer imprimir algum do dinamismo da cultura ‘start-up’ a uma Alemanha ainda presa a empresas familiares que comunicam com a administração pública por fax. A tradicional aversão ao risco da sociedade alemã pode ajudá-lo na recusa do endividamento e na reforma fiscal, mas será o maior impedimento à dinamização de uma economia demasiado dependente da indústria pesada que depende demasiado da China.

Annalena Baerbock
Ministra dos Negócios Estrangeiros

Robert Habeck,
Vice-Chanceler da Alemanha e Ministro das Finanças e Proteção Climática

Christian Lindner
Novo Ministro das Finanças

Olaf Scholz, Chanceler da Alemanha desde 8 de dezembro de 2021

“A ORIGINALIDADE ALEMÃ LEVA
OS LÍDERES A DEBATER ENTRE SI
NA PRÓPRIA NOITE ELEITORAL,
EM FRENTE ÀS CÂMARAS DA
TELEVISÃO PÚBLICA, PARA QUE
SE PERCEBAM OS POSSÍVEIS
ALINHAMENTOS.”

Encabeçando a coligação semáforo (por causa das cores dos partidos que a formam) está Olaf Scholz, o homem escolhido para fazer a continuidade após Merkel. E por isso o que se deve esperar é mais do mesmo: liderança tranquila e sem dramatismos, cumprindo um programa de forma tecnocrata e tranquila. O sistema político alemão foi desenhado para promover as coligações e os equilíbrios estruturais. É um reflexo de uma sociedade assente no pragmatismo e no rigor, que é avessa a aventuras e a extremismos. Os dois partidos menores da coligação fizeram um caminho de credibilização que os tornou capazes de governar, passando a ser “confiáveis”. São partidos que respeitam a sociedade e que, apesar de proporem visões transformadoras, sabem bem que a Alemanha profunda é avessa a aventuras radicais. Por isso e porque Scholz é o chanceler, convém não esperar loucuras. Este governo é, como todos os governos alemães, um modelo de continuidade que vai sempre procurar consensos em vez da rotura.
Aliás, tudo isto ficou devidamente demonstrado na forma como se processou o acordo de coligação. A originalidade alemã leva os líderes a debater entre si na própria noite eleitoral, em frente às câmaras da televisão pública, para que se percebam os possíveis alinhamentos que ficaram claros na forma tranquila como Verdes e Liberais comunicaram nesse momento. Daí evoluiu-se para um processo negocial rigoroso: cem tecnocratas de cada partido dividiram-se em 22 grupos de trabalho para discutir o programa de governo entre as onze da manhã e as cinco da tarde, com a obrigação de produzir um documento entre 3 e 5 páginas escrito em tipo de letra Calibri corpo 11, com espaçamento entre linhas de 1.5. A longa negociação teve o mérito de ser concluída de forma discreta, sem fugas para a imprensa, levando à apresentação pública do programa de governo da coligação que está a orientar quatro anos que começaram sem período de graça nem tempo para adaptações. Também não seriam precisos: a Alemanha pós-Merkel vai continuar a parecer a Alemanha dos últimos anos, mas sem Angela Merkel.

Partilhe este artigo:

- Advertisement -
- Advertisement -

Artigos recentes | Recent articles

Um país na flor da idade

Nos últimos 20 anos Angola sofreu inúmeras transformações, desde a mais simples até à mais complexa. Realizou quatro eleições legislativas, participou pela primeira vez numa fase final de um campeonato do mundo, realizou o CAN e colocou um satélite em órbita.

David Cameron

David Cameron foi Primeiro-Ministro do Reino Unido entre 2010 e 2016, liderando o primeiro Governo de coligação britânico em quase 70 anos e, nas eleições gerais de 2015, formando o primeiro Governo de maioria conservadora no Reino Unido em mais de duas décadas.

Cameron chegou ao poder em 2010, num momento de crise económica e com um desafio fiscal sem precedentes. Sob a sua liderança, a economia do Reino Unido transformou-se. O défice foi reduzido em mais de dois terços, foram criadas um milhão de empresas e um número recorde de postos de trabalho, tornando-se a Grã-Bretanha a economia avançada com o crescimento mais rápido do mundo.

Conferências com chancela CV&A

Ao longo de duas décadas, a CV&A tem vindo a promover conferências de relevo e interesse nacional, com a presença de diversos ex-chefes de Estado e de Governo e dirigentes políticos de influência mundial.

Mais na Prémio

More at Prémio

- Advertisement -