Quinta-feira, Maio 9, 2024

A resposta a esta crise depende de uma cidadania global

Jorge Moreira da Silva, Director da Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE
A resposta a esta crise depende de uma cidadania global

O facto de estarmos perante uma pandemia pode gerar uma falsa perceção de simetria e similitude nos efeitos da crise. Nada mais falso. A pandemia, nas suas vertentes sanitária, económica e social, vai penalizar principalmente, dentro de cada país, os cidadãos mais vulneráveis, e a nível global, os países mais pobres. Isto é, aumentarão as desigualdades dentro e entre países.

Encaremos o dilema: por um lado, estamos todos preocupados com a saúde e a situação económica e social dos nossos familiares, dos nossos amigos, da nossa comunidade e do nosso país. Faz, pois sentido que, depois da proteção dos sistemas da saúde, sejam agora as pressões sobre a economia, o emprego e o rendimento das pessoas que motivem a ação dos governos e a preocupação dos cidadãos. Por outro lado, é cada vez mais evidente que o percurso da pandemia até pode ter sido simétrico, mas a saída da crise pós-pandemia será assimétrica e alguns só o poderão fazer com a solidariedade e cooperação internacionais. Sendo que essa solidariedade com os países mais pobres – que para ser exercida nunca deveria necessitar de justificações que fossem além da defesa dos valores éticos – reforça a nossa segurança.

Esta guerra só terminará quando vencermos a última batalha. Até lá, ninguém estará seguro. E é altamente provável, atendendo às fragilidades dos seus sistemas de saúde, que a última batalha contra a pandemia venha a ocorrer em África. Por isso, quanto mais não seja a pensar na nossa segurança, os países mais ricos – e, sim, num mundo com mais de 800 milhões de pobres, Portugal é um dos países mais ricos – têm a obrigação de reforçar a cooperação e ajuda ao desenvolvimento. Só assim se poderá evitar a perda de imensas vidas e promover uma recuperação económica sustentável.

Enfrentemos a crua realidade e a fragilidade destes países na vertente sanitária: existem 3 ventiladores na República Centro Africana, 3 na Serra Leoa, 7 no Malawi; existem 19 camas para cuidados intensivos na Somália e 24 no Sudão do Sul; o rácio do número de médicos em África é de 2 por cada 10 mil habitantes (quando nos países da OCDE o rácio é de 34 por 10 mil). Sendo que os países africanos se continuam a deparar no dia a dia com graves problemas de saúde pública – Ébola, tuberculose, malária, HIV, hepatite. A situação sanitária é ainda mais grave quando se percebe que o confinamento é um luxo dos países ricos – distanciamento social em bairros de lata e favelas com milhões de habitantes? Lavagem frequente das mãos quando 4 em cada 10 casas não tem água segura e mais de 2400 milhões de pessoas não têm saneamento?

Mas o problema é bem mais vasto e vai além da vertente sanitária. Os dados e as estimativas apontam para um desastre económico pós- pandemia nos países em vias de desenvolvimento. O investimento direto estrangeiro cairá entre 30 e 40% em 2020; o turismo global cairá entre 45 e 70% (com especial impacto nos pequenos estados insulares); o preço de algumas ‘commodities’ (não só o petróleo) está em mínimos históricos. Para que se possa ter uma verdadeira noção da singularidade desta crise, logo nos primeiros dias da pandemia, mais de uma centena de países solicitou ajuda de emergência ao FMI (o triplo do número de países que o fez após a crise financeira global de 2008-09). O crescimento económico em África pode ser reduzido para metade e existem cenários que apontam para 130 milhões de novos pobres a nível global nos próximos meses. Ora, vale a pena lembrar que 44% dos países em vias de desenvolvimento já se encontravam sobre-endividados antes da crise; logo, não têm qualquer espaço orçamental remanescente para enfrentar a crise pandémica.

Sim, em poucas semanas podem ser perdidos os ganhos de três décadas de combate à pobreza nos países em vias de desenvolvimento, conseguidos através da globalização, da revolução tecnológica, da abertura dos mercados e da cooperação internacional.

O alívio do serviço da dívida (não foi, infelizmente, um perdão de dívida) anunciado há algumas semanas no G20 e nas Reuniões da Primavera do FMI e do Banco Mundial tem a vantagem de proporcionar, em 2020, uma almofada de liquidez de 25 mil milhões de dólares aos países mais pobres, mas não deu ainda a resposta que é necessária e que será inevitável face à dimensão do problema.

Uma crise global, necessita sempre de uma resposta global. Neste caso, precisa mesmo de uma. Nunca se deve desperdiçar a oportunidade que uma crise sempre oferece, desde logo na mudança de mentalidades. É tempo de impulsionar um novo modelo de desenvolvimento sustentável e resiliente, baseado nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e no Acordo de Paris, capaz de superar esta crise mas também as outras crises que nos atormentam e inquietam há vários anos: conflitos, fragilidade, migrações forçadas, alterações climáticas e extinção de biodiversidade.

A crise não é uma desculpa para adiar uma reposta que compatibilize sustentabilidade, competitividade e solidariedade; é uma razão adicional para a acelerar.

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