Sábado, Abril 27, 2024

“Sem o esforço dos privados, o Estado Português não teria conseguido fazer frente à pandemia”

Entrevista a José Germano de Sousa, Presidente do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa

 

Sofia Arnaud

Em entrevista à PRÉMIO, José Germano de Sousa, patologista clínico e presidente do Centro de Medicina Laboratorial Germano de Sousa, falou-nos do seu percurso enquanto médico, passando pelo cargo de Bastonário e do crescimento da sua rede de laboratórios, que se posicionam em termos de análises na área da patologia clínica como o principal ‘player’ nacional do sector, sendo actualmente responsáveis por cerca de 15 a 16% dos testes Covid que se realizam em Portugal.

Defende que o Estado só tem a ganhar se trabalhar com o privado no objectivo comum de melhorar a assistência à população e sente-se orgulhoso por estar a ajudar os portugueses nesta luta contra a pandemia.

É natural da ilha de São Miguel, nos Açores. Entre a infância no arquipélago, os tempos de estudante em Coimbra, os desafios de ser médico durante a guerra em Angola e a ocupação de cargos de relevo na sociedade, como o de Bastonário da Ordem dos Médicos entre 1999 e 2004, quais os momentos mais marcantes da sua vida?

Tenho muitos momentos marcantes na minha vida. O tempo enquanto estudante em Coimbra, que recordo com muita saudade, onde cresci enquanto Homem, aprendi a ser solidário, irreverente, a dar mais importância às pessoas do que aos galões e que a liberdade vale mais que tudo. Fui dirigente académico e por isso impedido pela PIDE de fazer estágios nos hospitais de Coimbra e de ser assistente na Universidade.

Depois fui para a guerra, outro momento marcante. Enquanto médico, fui trabalhar num hospital de frente militar numa pequena cidade chamada Luso, hoje Luena. Foram tempos muito complicados, a trabalhar dia e noite em situações muito difíceis. Ao mesmo tempo foi uma grande escola de medicina, eramos onze médicos no total e fazíamos de tudo.

No entanto tenho também muito boas recordações dessa época. Foi em Angola que nasceu a minha filha, Maria José, e fui eu o parteiro. Um dia que ficará para sempre na minha memória.

Outros tempos marcantes se seguiram, quando regressei para Lisboa iniciei a minha carreira médica nos Hospitais Civis de Lisboa, que eram a grande escola de medicina do país. Nessa altura nasceu o meu filho José, outro dos dias mais marcantes e felizes da minha vida.

O ser Bastonário da Ordem dos Médicos foi também muito importante, toda a actividade desenvolvida não só como médico, mas também como dirigente dos médicos. A minha acção como Bastonário foi muito importante para dignidade da medicina.

No sector da medicina laboratorial, o Grupo Germano de Sousa é tido como uma estrutura de experiência, rigor e profissionalismo. Como chegou até aqui?

A minha carreira foi feita nos hospitais civis, mas como todos os médicos era muito mal pago. Depois fui convidado para Professor Associado da Faculdade de Ciências Médicas. Quando terminei a especialidade em patologia clínica comecei a trabalhar num laboratório com um colega. Mais tarde saí deste laboratório e avancei para outro com mais dois colegas. Um dia dei por mim sozinho, com os meus dois filhos, a Maria José, já com a especialidade concluída, e o José, no último ano, e resolvemos avançar os três. E assim fomos crescendo sempre na base da qualidade.

Em 2003, na altura Bastonário da Ordem dos Médicos, fui “assediado” por uns grupos estrangeiros para vender o laboratório. Nesta altura estes grupos compraram grande parte do sector da medicina em Portugal. Chamei os meus dois filhos e perguntei-lhes se estavam interessados em vender ou se fazíamos frente a estes grandes grupos. Obviamente que a decisão foi avançarmos, apertámos o cinto e caminhámos em frente. Separei-me do meu sócio e adquirimos os três um outro laboratório. Apostando sempre na qualidade, os meus colegas começaram a reconhecer que o nosso laboratório era um laboratório médico por excelência. Que tinha o doente como sua primeira preocupação e que para além de fazer exames laboratoriais com o maior rigor e qualidade estava, através dos nossos médicos, constantemente ao dispor dos colegas de outras especialidades, como consultores.

Tudo isto permitiu que crescêssemos e nos começássemos a expandir. O espaço foi ficando pequeno e há sete anos mudámos para Telheiras, onde era o Centro Português de Design, renovámos o espaço, apetrechámo-lo com a mais recente tecnologia, fizemos um pequeno museu na entrada e, neste momento, já nos estamos a expandir para o edifício ao lado.

Neste momento, em termos de análises na área da patologia clínica devemos ser o principal ‘player’ nacional do sector, com uma média diária de 7200 doentes por dia a nível nacional, antes do Covid, com uma média de nove análises cada um.

Neste momento por quantos laboratórios é constituída esta rede?

Temos dois laboratórios centrais, um em Lisboa e outro no Porto. Estes laboratórios centrais para além da patologia clínica, têm também um laboratório de genética e de patologia molecular, que foi uma aposta que fizemos há cinco anos e que se dedica ao estudo de alterações genéticas e ao estudo de genética e genómica do cancro. Fomos pioneiros em muitos destes diagnósticos, conseguimos identificar os marcadores que nos permitem aconselhar uma melhor terapêutica e mais eficaz.

Para além destes dois laboratórios centrais, temos mais 12 laboratórios e cerca de 500 pontos de colheita de produtos biológicos espalhados pelo país.

Actualmente cobrimos todas as áreas possíveis da medicina laboratorial, patologia clínica com as suas vertentes de hemato-oncologia, hematologia, patologia química, endocrinologia até à microbiologia em todos os seus aspectos, incluindo virologia, onde estamos a fazer mais de 7000 testes Covid por dia em todo o país. Trabalhamos 24 horas por dia, não existem fins de semana ou feriados, tem sido um esforço desmedido.

É preciso notar que sem o nosso esforço e o esforço dos privados convencionados, o Estado português não teria conseguido fazer frente à pandemia. Até porque como dizia o director geral da Organização Mundial da Saúde era preciso testar, testar e testar e só testando era possível rastrear e identificar os focos, sem isso não era possível controlar minimamente e, nesse sentido, temos sido fundamentais. Só o nosso Grupo representa cerca de 15 a 16% de todos os testes Covid que se fazem em Portugal.

Há cerca de três anos abriu um centro nos Açores. O que esteve na origem desta decisão, ligações às suas raízes?

Sim, em Ponta Delgada. Ligações às origens, obviamente, e também porque era uma zona que estava mal servida e precisava do nosso apoio. Já tínhamos uma excelente relação com um laboratório local, esse laboratório quis passar a pertencer ao nosso Grupo e actualmente conseguimos fornecer todos os cuidados que habitualmente seriam mais difíceis nos Açores.

Como justifica os Laboratórios Germano de Sousa serem responsáveis por grande parte dos testes para a Covid-19 a nível nacional e com uma procura que não para de aumentar?

Quer queiramos quer não, a segunda vaga chegou e receio estarmos frente ao começo de uma terceira. Isto tudo representa um esforço muito grande e a nossa inserção neste processo é fundamental. Alguns políticos não gostam de o admitir, mas a nossa colaboração não só neste problema do Covid, mas também no “abrir portas” para receber doentes vindos das mais variadas origens, através de convenções, desde o Serviço Nacional de Saúde (SNS), do sector privado, da ADSE, da PSP e de várias seguradoras, permitem que não haja uma rotura nos cuidados de saúde que se se prestem diariamente em Portugal Não só a nossa acção mas também a de outros laboratórios que tal como nós estão convencionados, isto é, que tem um acordo com o MS para receber todos os doentes do SNS por preços justos

Relembro que foi este conceito de convenção que permitiu em 1978/79, na altura em que é aprovado o SNS, dar aos portugueses aquilo que eles não tinham. A tal saúde “tendencialmente gratuita” só foi possível porque nós, homens de laboratório, da radiologia, da cardiologia, da gastroenterologia, de todas as especialidades com consultórios privados, nos dispusemos, por nossa iniciativa, junto do Governo para que o SNS fosse uma realidade não apenas no papel. O SNS só conseguiu implementar-se porque nós médicos, através da Ordem dos Médicos, assinamos uma convenção com o Estado onde nos comprometemos a prestar serviços de saúde a preços “socialmente justos”, que nada tinham a ver com os preços praticados nos privados.

Como é evidente, o SNS foi uma das excelentes obras da Democracia, mas é preciso ser justo para quem o ajudou a construir.

Actualmente, o nosso Grupo de Laboratórios e outros convencionados recebemos 22 mil pessoas diariamente vindas dos centros de saúde.

É uma veleidade extrema dizerem que nos podem dispensar e, saindo um bocadinho da minha área, gostava de lembrar que o SNS existe porque existem privados e também porque existem Misericórdias.

Em Portugal 45% das pessoas estão cobertas por outro sistema de saúde, para além do direito ao SNS. Se estes sistemas deixassem de existir, o SNS não teria capacidade para tanta gente.

Nós existimos porque precisam muito de nós! Somos extremamente úteis, e se não fossemos nós o Estado falhava. Neste sentido fico muito contente por poder ajudar o povo português.

Quer explicar-nos que tipo de testes existem neste momento para a Covid-19 e em que circunstâncias cada um deve ser usado?

O primeiro teste diagnóstico que recomenda a DGS nas suas normas é o teste molecular (RT-PCR).

Na falta deste, e apenas se existirem sintomas, pode utilizar-se o chamado teste rápido de antigénio. Este teste só tem efectividade se for realizado nos primeiros 5 ou 6 dias de sintomas. Estes testes não funcionam em casos pré-sintomáticos ou assintomáticos, podendo resultar em falsos negativos.

As medidas do Governo e da Direcção Geral de Saúde (DGS) têm feito sentido ao longo da pandemia?

De uma maneira geral sim. Estamos perante uma situação nova, complexa e que surgiu de um momento para o outro. O que aconteceu com Portugal, também se verificou em outros países europeus, as medidas iam sendo tomadas à medida que a DGS recomendava, com alguns recuos e avanços pelo caminho. Houve alguns erros, tomaram-se medidas tardias, mas é fácil censurar à ‘posteriori’.

Na minha opinião, quando terminou a primeira vaga deveria ter havido uma acção mais atenta e de monotorização por parte das autoridades a algumas zonas problemáticas, bairros mais pobres onde estavam pessoas infectadas que não deixaram de ir trabalhar ou não cumpriam as regras de segurança básicas. Note-se que logo a seguir começaram a surgir surtos na construção civil, por exemplo.

No Natal deveriam também ter existido também regras mais restritas, para evitarmos uma terceira vaga em Janeiro ou Fevereiro.

Muitas pessoas não estão a cumprir algumas regras básicas para evitar a propagação do vírus, principalmente as camadas mais jovens. O Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, defende que deve existir “uma comunicação simples, curta, clara e sempre verdadeira”. Acha que a comunicação deve ser mais assertiva?

Acho que se começou a pensar na comunicação tarde. Agora começa a ser diferente, mas só agora se percebeu que era preciso comunicar de outra maneira e para diferentes públicos.

Um rapaz de 25 anos não ouve diariamente as conferências de imprensa da DGS. Funcionava melhor se utilizassem ‘youtubers’ que estão em voga ou mesmo o Ronaldo ou o Ricardo Araújo Pereira a passar a mensagem.

Do lado da comunicação social houve também um pânico desnecessário. Acho que foi exagerado, as pessoas já não queriam ver as notícias e viviam numa ansiedade permanente.

Numa carta aberta, publicada no jornal Público, direcionada à ministra da Saúde, Marta Temido, e respetivas autoridades, os médicos sublinham que o SNS “sozinho não poderá ajudar todos os doentes” e que vai entrar em “disrupção” se nada for feito rapidamente. Na sua opinião, considera que os privados deveriam ter mais intervenção no combate à pandemia?

Há cerca de três ou quatro meses os Bastonários da Ordem Médicos, com o Dr. Miguel Guimarães à cabeça, escreveram uma carta à Senhora Ministra da Saúde recomendando que rapidamente permitisse que o sector privado e o sector social fossem também contratados, a preços “socialmente justos”, para fazer parte de toda a rede de apoio à luta contra a pandemia Covid-19. Esta carta foi altamente criticada e a Senhora Ministra pronunciou-se dizendo que o SNS não servia para dar apoio à iniciativa privada.

Neste momento a realidade é outra e o SNS foi obrigado a recorrer às Misericórdias e aos privados, como o Grupo José de Mello e outros.

Desde o início houve sempre da parte dos privados e das Misericórdias toda a boa vontade para participar nesta luta, mas quem mandava era o ministério da Saúde.

A tão desejada vacina contra Covid-19 já chegou a Portugal. Concorda com plano de vacinação delineado?

O plano delineado parece-me bem. Apenas incluiria na primeira fase, para além das pessoas com mais de 50 anos com patologias associadas, residentes e profissionais em lares e unidades de cuidados continuados, profissionais de saúde, profissionais das forças armadas, forças de segurança e serviços críticos, também todas as pessoas com mais de 65 anos. A informação ainda é um pouco confusa.

A vacina é gratuita, facultativa e administrada no SNS. Muitos portugueses estão com receio de a tomar e muito dizem que não a vão tomar por insegurança na sua fiabilidade. Há razões para ter medo?

Não há razão para ter medo. Pelo que se sabe das vacinas não há que ter receio, quer as vacinas que utilizam RNA mensageiro , quer as vacinas que utilizam vírus atenuados. No entanto, é claro que podem existir efeitos secundários, como febre, dores no corpo, tal como acontece com a vacina da gripe ou qualquer outra vacina.

O Senhor Professor vai tomar a vacina?

Vou tomar com muito gosto, logo que chegue a minha vez.

É possível que se erradique vírus com a vacina ou vamos ter de conviver com o vírus pelo resto da vida?

Esta vacina, tal como a da gripe, não é uma vacina esterilizante. À semelhança do que acontece com a vacina da gripe esta vacina vai actuar durante um número de meses, talvez um ano, que já é muito bom. Provavelmente todos os anos vamos ter de a tomar.

Julga-se que, com mais de 65% das pessoas vacinadas existirá imunidade de grupo, mas tenho receio que essa imunidade não perdure. Prova disso são os quatro coronavírus que existem desde os finais dos anos 60 do século passado, estes benignos, e que voltam todos os anos provocando constipações, com tosse, etc. Os coronavírus benignos que existem, não criaram imunidade duradoura.

Vamos ter de viver com este vírus entre nós e vamos ter que nos vacinar contra ele todos os anos, mas não vamos erradicá-lo.

Na sua opinião, em 2021 as máscaras vão desaparecer? Para quando um regresso à normalidade?

A partir do momento em que haja um grande número de pessoas vacinadas, é válido deixarmos as máscaras. Penso que até ao final do ano podemos deixar as máscaras, se todos nos vacinarmos.

Para finalizar, sabemos que escreveu um livro sobre Medicina Portuguesa durante a expansão e que é um dos dinamizadores do Museu da Saúde em Lisboa. A Covid-19 vai ficar registada em algum livro da sua autoria? E haverá um espaço dedicado a esta doença no Museu?

Um dos meus ‘hobbies’ é a história da medicina, tenho feito muita coisa nesta área, inclusive o dicionário da História da Medicina.

Em relação ao Covid já escrevi, foi publicado recentemente pela Dom Quixote um livro com especialistas em várias áreas a falar no tema e eu também dei o meu testemunho sobre o que é o Covid e o que pode ser o futuro. Mas ainda é muito cedo para se fazer a história do Covid-19, não existem dados suficientes.

Para ter uma ideia, há uns tempos fui convidado para apresentar um livro sobre a Pneumónica, pandemia que grassou há 100 anos atrás. Mesmo assim ainda há dados que faltam para fazer a sua história definitiva.

Fui nomeado, pelo então ministro da Saúde Adalberto Fernandes, como Alto Comissário para o Museu. Consegui juntamente com a Helena Rebelo de Andrade, coordenadora do Museu, e com o apoio do presidente do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), Fernando de Almeida, inaugurar este espaço, onde actualmente está a decorrer a exposição “800 Anos de Saúde em Portugal”. No Museu Nacional da Saúde, daqui a uns tempos, existirá certamente uma área reservada ao Covid.

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