Sábado, Maio 4, 2024

“C” de Cansado Não de COVID

David Azevedo Lopes, Presidente da AEON Japão

É com um enorme esforço que escrevo as primeiras palavras deste artigo. E a razão, acredito que seja partilhada com quem o lê. Continuar a falar do Covid e do seu impacto na vida de todos nós. Da mesma forma que alguém elege a “palavra do ano”, alguém um dia destes usará um algoritmo e a inteligência artificial para nos confirmar que as palavras “Covid” e “Pandemia” foram, já neste ano de 2020, as palavras mais repetidas na história da humanidade. Nada parece existir para além do vírus e das suas consequências e isso é, na minha opinião, preocupante e mesmo perigoso. Não por subestimar a taxa de contágio e de mortalidade do vírus e os seus efeitos colaterais, mas pelo facto desta pandemia ter as costas tão largas que permite mesmo que direitos, liberdades e garantias possam ser obliteradas e que um pouco por todo o mundo políticos e dirigentes medíocres possam ver ilibada a sua fraca contribuição, para o bem comum e para o desenvolvimento económico.

A perda de vidas é e será sempre a consequência mais dramática e terrível desta pandemia global, mas aquela que mais perdurará será a devastação de milhões de postos de trabalho e a consequência para a maioria dos cidadãos do mundo de uma perda de rendimentos que atingirá sempre e em primeiro lugar os desqualificados e os mais frágeis. A pobreza na infância e na terceira idade sempre existiu em Portugal, e apesar de uma evolução positiva nos últimos 30 anos, somos um país que não se conseguiu livrar de uma pobreza crónica, de uma dependência enorme em relação ao Estado e às prestações sociais. Perante isto continuamos a usar sempre a mesma fórmula. Carregar nos impostos. Transformar a política fiscal numa punição, num castigo ao sucesso em vez de uma ferramenta de solidariedade e equidade. Restará uma vez mais algum outro caminho? Não resta. Pelo simples facto de uma vez mais, um novo ciclo político, que até coincidiu com um período de crescimento económico na Europa, não nos ter trazido absolutamente nenhuma reforma. Nem no Estado nem nas condições que este deveria criar posicionando-se como um agente de mudança e de apoio à inovação e ao empreendedorismo. Ao invés continuamos a olhar o turismo (muito lhe devemos) e os serviços de baixo valor acrescentado, como o gerador de mudança e de modernidade. A mesma falsa ideia de modernidade e de inovação trazida por eventos como o Websummit, pago por todo nós, e que para quem conhece o mundo da tecnologia, sabe que estamos perante uma espécie de “exponoivas” do digital, e por isso com um potencial transformador muito limitado.

Não foi o Covid que nos trouxe aqui. Foi e continua a ser uma falta de ideia para o país. A incapacidade de empregar doutorandos nas pequenas e médias empresas. A dificuldade de fazer do mérito o denominador comum da igualdade de oportunidades. A impossibilidade de ver crescer significativamente a componente tecnológica e de inovação nos nossos produtos e serviços. A inação, quase total, de um país perante o seu maior recurso: o Ambiente e o Oceano. O desespero de um sector cultural que quase sucumbe hoje, não por que o Covid lhe tira o palco, mas porque Portugal nunca o elegeu como uma das suas maiores riquezas e um dos seus mais importantes pilares de diferenciação. Mas sempre, e sobretudo, uma grande falta de exigência com aqueles que nos representam e uma ausência de avaliação técnica e isenta em relação às políticas e aos investimentos públicos.

Apesar de só cerca de 50% da população portuguesa ter terminado o ensino secundário, temos os mais qualificados portugueses de sempre, universidades de grande qualidade e uma visão do mundo informada e integradora. Um filósofo polaco disse um dia que trocava a sua gloriosa história por uma melhor geografia. Atrevo-me a dizer que nós não trocaríamos, por nada deste mundo, nem a nossa história nem a nossa geografia.

Tenho aprendido com os meus colegas japoneses lições de vida que são dádivas diárias. Os sucessos atingem-se e celebram-se em grupo. Nunca são obras de uma pessoa só. As crises, essas antecipam-se e planeiam-se, tal como devemos fazer obras no telhado antes da época das chuvas. Regresso por isso a um texto que escrevi um ano depois do terramoto e do Tsunami de 11 de Março de 2011, onde desapareceram mais de 20 mil pessoas e que me ajuda a perceber a força da inteligência coletiva, que nos falta.

“A área de impacto do tsunami, que ultrapassou dez quilómetros da linha de costa, está praticamente reconstruída, mas os seus efeitos tornaram-se globais, pois geraram uma das mais profundas reflexões, superior a Chernobyl, sobre a segurança de instalações nucleares, com a Alemanha e os Estados Unidos, a introduzirem alterações significativas na sua política regulatória que poderão contribuir para tornar o mundo um lugar mais seguro no futuro. Entretanto no grande Tóquio, a maior aglomeração urbana do mundo, com 35 milhões de habitantes, e um pouco por todo o país, foi dia de homenagear os que perderam a vida e os que continuam a trabalhar continuamente, com uma resiliência que nos faz entender profundamente que existe uma energia interior, muito superior à energia atómica e a qualquer cataclismo. Termino o dia numa cerimónia de chá. Aqui neste país que tem os portugueses como amigos, conto aos japoneses com quem estou, que na Europa existe um único local onde é possível plantar e colher chá. Exprimem uma surpresa genuína quando lhes conto que a ilha de São Miguel nos Açores é esse local. Também é essa uma pequena história de resistência e de determinação. Ao contá-la recebo em troca o significado do chá e da sua cerimónia. Que bom é ouvir falar de coisas que eu não sabia.”

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