Sebastião Bugalho
O título corre riscos de cinismo ou ironia, mas não é disso que se trata. Marcelo Rebelo de Sousa, que é Presidente da República há quase seis anos, é tomado por quem o vê e escuta como a antítese de um chefe de Estado discreto. A sua popularidade, a que prefere chamar ligação ao povo, é a maior responsável por essa sua aparência efervescente. Marcelo na praia, Marcelo no rio, Marcelo a chegar ao local do desastre antes dos bombeiros ou da CMTV, Marcelo nas ‘flash-interviews’ dos jogos da seleção, Marcelo a telefonar ao enfermeiro português que cuidou de Boris Johnson, Marcelo a emitir uma nota de pesar pela morte de George Michael, Marcelo a falar ao país em casa, via ‘webcam’, Marcelo a apresentar a sua recandidatura numa pastelaria, Marcelo a ser, não o que realmente é, mas aquilo em que a sua personalidade presidencial, para os portugueses, se tornou.
Tudo isso é Marcelo – e nada disso é Marcelo – porque os paradoxos seriam sempre inevitáveis para um político que atravessou dois regimes, duas Repúblicas e outras eras. O ponto deste texto não é tanto o que Marcelo é, pois a sua empreitada biográfica foi já consumada, nem o que Marcelo tem sido, na medida em que tal, graças aos órgãos de comunicação social que também ajudou a fundar, nos tem chegado diariamente a casa. O ponto deste texto é, antes, um outro exercício, que certamente ocupará um canto da consciência do próprio: como é que, depois de uma década em Belém, será recordado na História? E isso, olhando para o ciclo político que agora terminou e para o outro que vem surgindo, parece ter muito pouco a ver com a perceção que nós, enquanto país, temos tido do Presidente até aos idos da sua presidência.
Marcelo esteve presente, é verdade, mais do que todos os outros que desempenharam a sua função antes dele: em declarações, aparições, concertações governamentais e proximidade (já antiga) ao primeiro-ministro. Meteu-se, foi metido e deixou-se meter em áreas do executivo, apontando caminhos, travando impulsos e impondo limites.
Mas essa presença não foi mais do que um reflexo – umas vezes melhor gerido do que outras – da sua única prioridade enquanto Presidente da República: a estabilidade. Para ele, que recebeu um governo composto por uma solução sem precedentes, um país ainda em procedimento por défice excessivo, um sistema partidário erodido e em metamorfose, uma ameaça populista oriunda da sua área política, a maior catástrofe humanitária verificada em democracia, a maior crise sanitária em um século e o maior envelope financeiro desde a adesão europeia (o PRR e o PT2030), o estilo interventivo foi mais uma necessidade do que um gosto.
Quando os dez anos de Marcelo terminarem, não sentiremos somente o vazio de uns sapatos difíceis de preencher, mas um enfado por tantos problemas dificilmente tornarem a coincidir no mesmo período de tempo. O país, em 2026, não estará garantidamente melhor do que estava em 2016, mas uma coisa é certa: não estará pior. E Marcelo, que foi popular e popularucho, que deu uma mão ao PS por não ter ninguém a pedir-lhe a outra, sairá do Palácio de Belém como o mais discreto dos presidentes. Sem as tentações de presidencialização do regime de Eanes, com os seus governos de iniciativa presidencial e o seu PRD; sem as malandrices de Soares, que fez a vida num inferno tanto a Cavaco Silva quanto a Guterres; sem a dissolução da Assembleia da República de Sampaio; sem a oposição de Cavaco a Sócrates no segundo mandato ou a sua tentativa de acordo entre o então primeiro-ministro (Passos) e o então líder da oposição (Seguro); e sem nada daquilo que, dentro ou fora dos seus poderes constitucionais, lhe teria permitido ficar na História como algo além de si mesmo.
Marcelo será, no fim, só Marcelo. O primeiro Presidente que não quis ser mais do que isso.