Friday, March 29, 2024

Exemplo de teste

José Manuel Fernandes, Jornalista

No princípio do mês de Junho, numa altura em que dezenas de cidades norte–americanas assistiam a manifestações de protesto e dor pela morte brutal de George Floyd, manifestações essas que frequentemente degeneraram em motins, assaltos a lojas e actos de puro vandalismo, o director das páginas opinião do “New York Times” foi obrigado a demitir-se por ter publicado o texto de um senador republicano. Porquê? Porque nesse texto se defendia uma posição controversa – muito controversa mesmo – do Presidente Trump, a de chamar os militares para repor a ordem nas cidades mais afectadas por esses motins. A demissão aconteceu depois de uma revolta na redação e não tem duas leituras possíveis: num dos maiores e mais prestigiados diários do mundo há posições do Presidente dos Estados Unidos que não têm direito de cidade.

Na mesma semana o director do quase bi-centenário “Philadelphia Inquirer” também foi obrigado a demitir-se por ter permitido que um texto de opinião onde se procurava explicar que as principais vítimas da delapidação do património urbano eram os mais pobres tivesse como título “Buildings Matter, Too”, algo que foi considerado ofensivo pelos redactores.

Dou estes exemplos porque é sempre bom olhar para o que se passa nos Estados Unidos pois, por regra, o que lá se passa acabará por passar-se cá, mesmo que mais tarde e noutra escala. E aquilo a que temos assistido nos últimos anos na pátria de Thomas Jefferson é à destruição do jornalismo tal como o conhecíamos. Há cada vez menos preocupação com regras de equilíbrio e objectividade e dir-se-ia que os jornalistas não só optaram por um campo, como escolheram a sua trincheira, se enfiaram nela, vestiram os camuflados e só pensam no combate.

“Para quê ouvir os dois lados se só há um lado?” “Não me falem de objectividade, eu quero é a verdade.” Eis frases que se começam a ouvir com a maior das naturalidades, pois é com a maior das naturalidades que se escolhe um lado e se assume que a “sua verdade” é a verdade – a única verdade.

Claro está que depois há todos os detentores das outras verdades, ou os que não se reveem naquela verdade única. Mas, para já, é este o modelo que funciona, até porque perversamente é este o modelo que dá mais resultado do ponto de vista económico. No tempo de Trump, nesta triste era de uma sociedade americana dividida e polarizada como nunca terá estado desde os anos da guerra civil, há os jornalistas, os jornais e as televisões da “resistência”, todos os que todos os dias encontram uma nova história para comprometer a Casa Branca, assim como há os jornalistas, os jornais e as televisões “patrióticas”, as que só não andam sempre com o boné “Make America Great Again” porque não podem.

Com a publicidade em queda, são as audiências que sustentam os órgãos de informação, e essas audiências estarão mais disponíveis para pagar a assinatura ‘online’ ou televisão por cabo se se sentirem identificadas com “a verdade” que ali lhes é relatada – a “sua verdade”. Mais e pior: a disponibilidade dessas audiências para apoiarem os órgãos de informação será maior se estiverem emocionadas, indignadas, porventura mesmo excitadas. Estarem só correctamente informadas não lhes chega, têm de se sentir parte da causa, seja ela a “resistência” ou o “patriotismo”. São os leitores mais militantes que puxam pelos jornalistas mais activistas e são estes apresentam melhores resultados aos proprietários: o modelo de negócio favorece a corrida para os extremos, não premeia a moderação e o equilíbrio.

Esta clivagem radical tem consequências trágicas para a saúde da democracia. Na prática está a deixar de haver um espaço público comum onde a opinião pública partilhe a mesma informação. Isso começa a ser impossível no momento em que o mesmo evento é relatado de forma completamente diferente por dois órgãos de informação rivais – e estou a falar de ser relatado, não de ser comentado. Mas isso torna-se realmente impossível quando passamos dos órgãos de informação tradicionais para as redes sociais, onde então esse espaço público se estilhaça e tribaliza.

É bom ter noção que, para além do que sucede ao próprio, à família e aos amigos, a informação que se partilha nas redes sociais é a informação que de alguma forma nos causa emoções. É essa a lógica dos ‘likes’ e dos ‘dislikes’. Não há no nosso ‘feed’ nem no que seleccionamos para enviar aos nossos amigos qualquer critério de relevância informativa ou interesse público. O que ali surge são notícias, comentários, notas, ‘tweets’, tudo o que possa de alguma forma reforçar as minhas preferências e as minhas convicções. É assim que funciona o algoritmo.

Ora o que daqui resulta é que temos um espaço público que a comunicação social tradicional deveria criar mas que neste momento está a dividir, um espaço público esse que depois se pulveriza em múltiplas tribos que têm cada vez mais dificuldade em falar umas com as outras porque já nem conhecem a linguagem de quem vive na “bolha” do lado. O que Trump tem feito é explorar de forma obscena esta divisões, mas não foi ele que as criou, elas já lá estavam. E no dia em que ele partir não tenhamos ilusões: essas “bolhas” não vão rebentar, as clivagens não vão desaparecer.

Como disse logo no início deste texto, vale sempre a pena olhar para o que se passa nos Estados Unidos porque é frequente irmos atrás, mesmo que com alguns anos de diferença. Quem olhar com atenção para a nossa realidade – e, na nossa realidade, para o pequeno mundo da informação – encontrará já alguns sinais de que podemos estar em vias de entrar num caminho semelhante. Há mesmo condições, se repararmos no estado de enorme debilidade da maioria das redações, para isso até suceder com muito maior facilidade. Se alguma coisa evita para já males maiores é que somos uma sociedade mais homogénea e nas redes sociais o mais inócuo Instagram ainda parece ser mais popular que o sempre torrencial Twitter.

Mas há uma coisa que eu sei: há demasiados portugueses que parecem ser invisíveis para os grandes órgãos de informação, tal como há sectores importantes da opinião que se sentem sistematicamente subrepresentados ou mesmo discriminados. Quando isso sucede mais tarde ou mais cedo acabam por ocorrer rupturas. Nessa altura não digam que eu não avisei. 

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