Terça-feira, Abril 23, 2024

Comunicação Social

2033: o jornalismo que sobreviver

Lembra-se como era em 2003? Ainda líamos o “O Independente”, o “Diário Económico”, “A Capital”, o “Comércio do Porto”, todos em papel. Os sites de informação eram poucos e pobres, pelo que se abriram ao “almoço grátis”.  As redes sociais ainda não existiam e nós recorríamos ao “Messenger” para agilizar o contacto. As televisões e rádios tinham o dobro dos jornalistas. A crise ainda só nos começava a bater à porta, num aviso de que o país estava de tanga e numa réplica de que o défice não fazia um orçamento.

Em 15 anos tudo mudou tanto que os jornalistas já só sabem falar de uma crise. Mas, olhando objectivamente, não foram só anos de perda. Houve também jornais que nasceram, ‘online’, e conseguiram lugar entre os leitores; as redes sociais trouxeram leitores, embora também dissabores; a tecnologia permitiu um acesso à informação que aumentou a nossa capacidade de acrescentar, escrutinar, desafiar.

O pior é, porém, ver como o jornalismo de referência, com todas as transformações do mundo, se tornou num dos principais alvos de ataque dos críticos do sistema democrático, vulnerável aos poderes menos desejáveis.

No meio deste furacão que transformou o mundo e transformou os media, perspectivar como vamos estar em 2033 é como adivinhar como estará a América depois de Donald Trump: é impossível ter certezas, mas… talvez dê para ter uma ideia. Vamos a isso?  

As más notícias

É que não vão ser anos fáceis para a imprensa livre – ou para os media livres. Não vai ser fácil porque, como tudo indica, os próximos 15 anos vão ser um prolongamento natural do melhor e pior que tivemos nos últimos 15 (vá, nos últimos 10): acelerado progresso tecnológico, mudança nos hábitos de consumo, renovação profunda no modo como se faz jornalismo.

Convém, portanto, deixar de lado as utopias e deixar-lhe o nosso pressuposto: a economia e sociedade continuarão a ser construídas com base em informação aberta, mas a escassez de recursos vai continuar a ser uma realidade. Dito de outra forma: os media não vão descobrir a poção para a rentabilidade segura e vão continuar a viver uma prolongada crise de produção.

Não sendo uma utopia, a verdade é que também não vai ser um cataclismo. Vão ser anos difíceis para fazer jornalismo, mas vão ser anos bem interessantes para o seguir. Porque o único caminho da salvação é fazê-lo cada vez melhor, aproveitando o que de bom a tecnologia tem para nos dar.

Ainda vamos ter papel? Foi a pergunta para um milhão de dólares dos últimos 15 anos. E nos próximos 15?

Em Maio deste ano, o jornal La Stampa fez 150 anos e juntou num palco os principais accionistas e directores dos maiores jornais do planeta. Mas foi preciso chegar a vez de Jeff Bezos, o gigante da tecnologia que a meio desta última década comprou um dos maiores jornais em papel do mundo, para chegarmos a uma resposta convincente: “Se há 10 anos nos perguntassem isso, todos diríamos que não. Hoje já ninguém tem a certeza”.

Não tenha dúvida, porém, sobre a tendência que vai continuar: os jornais em papel vão, na melhor das hipóteses, tornar-se uma raridade (sobrarão poucos nos países maiores, talvez um ou dois nos mercados mais pequenos); já quanto aos media digitais, prepare-se para o milagre da multiplicação. Vão ser mais do que muitos, porque é barato fazê-los assim, porque a mensagem se espalha com mais facilidade. Mas como muitos significa acrescentar confusão a um mundo já com informação a mais, conte que os novos optem por um caminho de diferenciação: especialização em temas específicos, de nicho, assumindo em muitos casos a sua missão como uma causa. Os temas de Ambiente e a luta contra as alterações climáticas são, provavelmente, o exemplo mais claro do que aí vem.

Mas é precisamente o excesso de informação – no meio digital, nas redes sociais, nas plataformas que aí vêm – que vai garantir um espaço para os chamados “meios generalistas”. Se o mercado tem horror ao vazio, ele dará sempre lugar aos meios que ofereçam um olhar global sobre a actualidade, mas também mais credibilidade à informação.

Mas atenção, porque não vão sobreviver todos, nem haverá muitas cadeiras para os novos. A fila dos ‘mainstream media’ terá sempre menos leitores, porque as mudanças tecnológicas vão generalizar a produção de notícias. Pelo que os obrigará a recentrar o seu papel (já lá vamos) e, sobretudo, a preservar muito melhor o valor das suas marcas.

O factor determinante para a sobrevivência será o da qualidade: no trabalho diário, no rigor, na transparência. Nos 15 anos que se seguem, os leitores antigos e as novas elites vão ser muito exigentes com o rigor da informação que lêem, vão exigir muito ‘fact-check’, vão ser pouco tolerantes à utilização de fontes em ‘off’ – a não ser quando isso tenha um valor real -, assim como à falta de transparência ou de humildade na relação com o leitor.

Se o mundo vai estar mais complicado daqui a 15 anos, os leitores só vão querer ler os “velhos” jornais – seja ‘online’ ou em papel – se estes lhes facilitarem a leitura do mundo. Caso contrário, não faltarão “novos media” que farão sempre os mínimos. E esta é outra oportunidade para os meios de referência, que devem reforçar o seu papel de explicadores do mundo e de curadores do que é importante saber. Mas isso implica ganhar novas competências nas redacções, porque um mundo mais tecnológico e científico precisa de novas especializações.

Voltemos, então, à pergunta para um milhão de dólares: jornal em papel para quê? Para satisfazer quem precisa do tacto; para organizar a informação de um dia por ordem de importância; mas sobretudo para obrigar os jornalistas a pensar duas, três, quatro vezes para terem maior certeza sobre o que vão escrever, para garantir que vão acrescentar informação realmente importante e útil, para assegurar que não vão desistir da história no dia seguinte. Hoje, o jornal em papel ainda serve para isto. Daqui a 15 anos pode não ser preciso, se o melhor jornalismo souber passar essa seriedade do papel para o ‘online’. Conseguirá?

A revolução é tecnológica (e assim é boa)

Vale a pena manter o optimismo, porque a revolução tecnológica está só a meio caminho – e ela traz instrumentos para ajudar o melhor jornalismo. A boa notícia que está no horizonte é que a Inteligência Artificial (IA) está a caminho e vai ajudar muito mais do que imaginamos.

Sim, a verdade é que vamos ter máquinas a escrever notícias. Segundo perspectiva o Wall Street Journal, talvez 90% das notícias. Na verdade já fazem algumas, até mesmo em meios de referência: no Financial Times e na Associated Press, só para citar dois exemplos, são programas de computador que fazem versões preliminares de notícias sobre a evolução das bolsas ou sobre a apresentação de resultados de empresas cotadas. Parece assustador? Depende sempre da perspectiva. Para nós, nos media, pode ser uma oportunidade imperdível, porque pode permitir aos jornalistas concentrarem o seu esforço naquilo em que podem realmente acrescentar valor.

Se quiser, o principal efeito da IA é que a chamadas ‘breaking news’ passarão a ser feitas automaticamente. Para o leitor, nada se perde: hoje as notícias rápidas são iguais em todos os órgãos, fazem grande parte dos conteúdos que é obrigatório publicar em cada dia. São, portanto, uma necessidade e uma perda de tempo – e não é nelas que o jornalismo de qualidade se deve focar.

Se as máquinas as escreverem, daqui a 15 anos teremos os jornalistas a fazer o que mais gostam (e que supostamente melhor sabem fazer): acrescentar contexto; fazer a curadoria e a edição da informação; torná–las mais dirigidas ao seu leitor (portanto, mais úteis); ser claro nas dúvidas e não temer as perguntas; exigir respostas e escrutinar os poderes. Hoje, por efeito da crise económica, são já poucos os jornais que têm meios para fazer isto em cada tema, em cada sector, em cada secção. Se a tecnologia libertar as redacções, só teremos de estar gratos.

Tudo isto tem outra enorme vantagem para os jornalistas: se já não vão ter que fazer o básico e vão ser “obrigados” a acrescentar valor, muitos vão ser empurrados para uma especialização, para uma formação em vida que faz cada vez mais falta à profissão que abraçaram, à missão que desempenham.

No mundo de amanhã, lembre-se, não vamos ter apenas computadores inteligentes. Vamos ter muitos, muitos mais dados à nossa disposição. Tantos e tão mais acessíveis que vão permitir cruzar informação automaticamente (de discursos, documentos, etc.) e deixar ao jornalista o papel mais desafiante: terá de ser capaz de cruzar informação e perceber a complexidade dos fenómenos. É aí que se vai fazer a diferença: maior foco na explicação e menos no que é novo. Muito mais concentrados em fazer ‘fack-checking’ permanente (por exemplo, aos discursos dos políticos) e menos em descrever os seus discursos. Muito mais aptos a dar profundidade à informação local, servindo o leitor e a comunidade onde este se insere. Muito mais ágeis a desmontar as notícias falsas, até porque estas se vão multiplicar e precisam de ser denunciadas. Muito mais imprescindível, portanto, no nosso quotidiano.

Claro que as redacções vão ter de mudar, porque vão ter que incluir muitos mais especialistas que saibam tratar os dados e melhorar a experiência de utilização. Mas também vão ter que acentuar a sua marca de sempre, que é procurar relevância na afirmação dos valores cruciais da verdade, do escrutínio, da confrontação e exigência perante os actores – sejam eles políticos ou líderes de qualquer tipo, em qualquer sector.

Tudo isto vai trazer consequências laterais, como a maior colaboração entre meios internacionais, porque os temas serão cada vez mais transnacionais e porque esse é o caminho certo para dar valor à informação localizada e de acrescentar especialização e diferenciação ao jornalismo de amanhã.

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A ameaça e a oportunidade do jornalismo

Hoje vivem-se tempos de demagogia e populismo em que a democracia está sob ameaça. São também tempos em que a desintermediação é uma realidade: o discurso passa sem filtro entre líderes e seguidores e isso tem consequências perigosas quando a mensagem é falsa – por tudo isto, são muitos os interessados em denegrir a imagem do jornalismo e conquistar um espaço público livre de escrutínio. Estas tendências vão reforçar-se nos próximos anos. E todas elas são ameaças ao jornalismo e ao seu papel na sociedade. Mas são também a confirmação da sua absoluta necessidade.

O que estes últimos anos mostraram é que quando o jornalismo perdeu, falharam as instituições: nos EUA, em Inglaterra, na Polónia, na Hungria. Este diagnóstico exige a reconversão que já hoje é uma realidade mas que se vai reforçar nos próximos anos: vai haver uma tendência para o jornalismo de causas que reforce a identidade e o sentido de grupo nos leitores, mas vai também existir quem pugne pela objetividade acima da ideologia.

Mas o que vai mudar mais é a nossa relação com o digital: a fronteira vai esbater-se e tudo o que é virtual vai entrar no quotidiano de forma direta. A realidade que se vai impor daqui a década e meia será tão diferente do que temos hoje como foi a vida antes e depois da internet. Resumindo: a ubiquidade da informação digital vai estar à nossa volta e o mecanismo de interacção já não vai estar no bolso, mas sim na cara e no corpo. Vamos ter acesso em tempo real a camadas de informação e isso vai aumentar a realidade e transformar como a vivemos. Também isto vai exigir uma adaptação por parte dos média, que terão um longo caminho para percorrer.

Profissionalizar a gestão

Não há um modelo de negócio único que salve o jornalismo. Se é claro que o caminho é a qualidade, há formas diferentes de subsistência em função do mercado, dos leitores, da especialização e da capacidade dos média se reinventarem.

Uma tendência já é, no entanto, clara: a publicidade está a morrer como forma de sustentação do jornalismo. Os média já não são o espaço publicitário por excelência e o preço do ‘display’ está a cair a pique, tornando insustentável qualquer plano de negócios que aposte de forma relevante nesta receita. Isto pode até ser uma boa notícia, porque vai melhorar de forma consistente a experiência do utilizador e contribuir para uma clarificação mesmo a nível comercial. Existirão marcas socialmente responsáveis que continuarão a investir no jornalismo, mas não através do ‘display’. E o jornalismo terá de diversificar as fontes de receita, recolhendo parte do seu rendimento junto dos leitores que o escolhem.

Sim, o jornalismo terá um custo que será diretamente suportado pelos leitores. E isto coloca uma outra questão, que é a absoluta necessidade da manutenção de um serviço público de informação de qualidade – para que o acesso à informação não seja um privilégio que exclui quem tem menos rendimentos.

Provavelmente, nos próximos anos iremos também assistir de novo a uma concentração de meios. Mas a revolução que está por fazer é na gestão: em grande medida, esta continua a ser feita pela geração que se habituou ao modelo do papel e que não entende o digital – muito menos um digital como o que aí vem. Esta profissionalização da gestão terá de acontecer depressa, sob pena de pôr em causa mais uma vez a recuperação dos meios de comunicação social, que terão de se habituar ao novo paradigma. E é muito possível que, de uma forma ou de outra, o Estado também tenha aqui um papel, até porque o espectro da regulação chegou finalmente ao panorama digital.

Mas tudo isto são detalhes a que a indústria se irá adaptar. O essencial não está na tecnologia nem na regulação nem na origem das receitas. O essencial está na relevância. Os meios têm de ser relevantes para a comunidade em que se inserem e têm de ser úteis aos seus leitores – o que implica entender, sem cedências e de uma vez por todas, que o jornalismo é um serviço e não um produto. Esse serviço renova-se todos os dias e expressa-
-se através dos valores fundadores da profissão. É irrelevante que eles se expressem através de um vídeo, de um evento, de um ‘podcast’ ou de uma ‘app’ de realidade aumentada. Compete-nos a nós, profissionais da informação, ter a capacidade de adaptar o que sabemos fazer ao formato com que o leitor quer receber e consumir o nosso serviço.

Assim, reconhecer o leitor e as suas necessidades é essencial para o futuro do jornalismo. É importante escutá-lo, entendê-lo e perceber que ele não é um número numa estatística de visitantes que só serve para medir ‘pageviews’ e ‘banners’ publicitários que rendem tostões. Um leitor é um ser humano com necessidades e interesses específicos, que se insere numa comunidade que tem valores. Daqui a quinze anos, este será o jornalismo que sobreviverá: o que souber adaptar-
-se, mantendo sólidos os seus princípios, servindo sempre as necessidades da sua comunidade. Vai ser melhor? Esperamos obviamente que sim. A nossa missão é ajudar a que assim seja.

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Diogo Queiroz de AndradeJornalista
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David DinisJornalista

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