Quinta-feira, Abril 25, 2024

Alívio e estímulo: política orçamental durante e após a crise pandémica

Miguel de Faria e Castro*, Economista

À data em que escrevo este artigo, a Câmara de Representantes dos EUA acaba de aprovar um pacote de estímulo orçamental no valor de 1.9 biliões de dólares para apoiar a recuperação da economia americana da crise gerada pela pandemia de Covid-19, um dos maiores pacotes orçamentais da história dos EUA. Ao mesmo tempo, o Financial Times publica um editorial criticando os modestos planos de recuperação lançados a nível europeu, quando comparados aos do outro lado do Atlântico.¹

A pandemia de Covid-19 foi o maior choque do período pós-2ª Guerra Mundial para as economias desenvolvidas: as economias da UE e dos EUA contraíram 14.2% e 9.5% no 2º trimestre de 2020. Para além da dimensão, o tipo de choque também não teve precedentes, o que gerou problemas a nível das políticas de resposta. A política macroeconómica moderna assenta no paradigma de estabilização do ciclo económico, estimulando durante recessões e “apertando” durante expansões. Rapidamente se percebeu que esta abordagem não seria a mais apropriada para lidar com uma crise de saúde pública que exigiu o fecho controlado de sectores inteiros da economia. Medidas tradicionais de estímulo tornam-se contraprodutivas, pois estimulam a actividade económica que se tentava agora propositadamente abrandar. O objectivo da política económica passou de “estímulo” para “alívio”, com vista a tentar minimizar o impacto sobre os agentes que mais dependiam dos sectores fechados, e preservar a estrutura produtiva destes sectores.

Com taxas de juro muito baixas ou mesmo negativas, os principais bancos centrais viram-se limitados em termos de política convencional e reactivaram várias das medidas extraordinárias que tinham sido usadas durante a Grande Recessão. A sua actuação foi rápida e, possivelmente, evitou que o choque despoletasse uma crise financeira em Marco de 2020. Mas a política monetária estava já nos seus limites, para além de que não é facilmente direccionada para os sectores da sociedade que estavam a ser mais afectados pela crise. A maior parte do “alívio” teve necessariamente de vir da política orçamental.

A Figura 1 mostra o “alívio total” oferecido por vários países em % do PIB. A intervenção é classificada em dois tipos: despesa directa e passivos contingentes. A despesa directa consiste em recursos directamente injectados na economia pelos governos, normalmente direccionados a famílias (transferências directas, programas de apoio a desempregados, etc.), sendo que os passivos contingentes consistem em garantias ou empréstimos concedidos por governos, normalmente direccionados a empresas.

A figura demonstra que apesar de países europeus como a Alemanha e a Itália terem oferecido alívio substancial, foram no geral muito mais comedidos em termos de estímulos directos do que os EUA. Esta diferença é, até certo ponto, de esperar dado que os países europeus tendem a ter sistemas de segurança e protecção social muito mais generosos, o que significa que parte desse alívio provém de estabilizadores automáticos e não requer as medidas discricionárias que estão a ser medidas na Figura 1. A isto se acresce que as economias europeias tendem a ser menos dinâmicas do que a economia americana em termos de criação e destruição de emprego. Isto explica porque é que o desemprego nos EUA aumentou muito mais do que na Europa, mas também caiu rapidamente. Estes dois factos contribuem para explicar a composição diferencial da resposta à crise, e porque é que os governos europeus se focaram muito mais em apoiar empresas e na manutenção de postos de trabalho que não seriam rapidamente recuperados se destruídos.

Apesar de a pandemia ainda não estar totalmente controlada, as campanhas de vacinação avançam em bom ritmo e a atenção vira-se para a reabertura das economias, e para as políticas que serão necessárias para garantir que estas recuperam de forma sustentada. Ao contrário das já discutidas políticas de alívio, estas serão políticas de estímulo mais tradicionais. Nos EUA, o pacote proposto de 1.9 biliões de dólares ainda terá de ser aprovado pelo Senado. Na UE, a recuperação será apoiada pelo Next Generation EU, com 750 mil milhões de euros a distribuir pelos estados-membros entre 2021-2023.

Figura 1

A dimensão e composição destes pacotes tem dominado o debate de política económica dos dois lados do Atlântico. Nos EUA, há quem defenda que o pacote é excessivamente grande, sendo que o argumento é o seguinte: as políticas de alívio discutidas nos parágrafos anteriores levaram a um aumento do rendimento disponível das famílias, que se encontra 15% acima do valor pré-pandemia. O rendimento disponível aumentou de forma anormal não apenas devido a essas políticas, mas também porque parte da economia se encontra fechada, e as famílias não podem gastar esse rendimento adicional em certos bens e serviços que normalmente comprariam (turismo, idas a restaurante, etc.). Existe, portanto, “procura acumulada” por bens e serviços, que não se materializa apenas porque a economia ainda se encontra fechada. Após a reabertura, haverá bastante rendimento disponível para gerar um grande aumento da procura agregada, na qual se baseará a retoma. Portanto, um grande estímulo orçamental não apenas não é necessário, como poderá causar problemas: implica um grande aumento da dívida pública, que já se encontra em níveis historicamente altos (130% do PIB), e possivelmente um grande aumento da taxa de inflação.

Na Europa, por outro lado, como as políticas de alívio directo foram mais modestas, o rendimento disponível das famílias caiu, encontrando-se 3% abaixo do seu valor pré-pandemia (e com quedas maiores nalguns estados-membros). Logo, não há expectativas de que “procura acumulada” possa sustentar a retoma. A situação em termos de investimento privado é ainda mais chocante: queda de 10% na UE, comparada com 1.7% nos EUA. Estes dois factos levam vários analistas a crer que o ‘output gap’ na UE é bastante superior ao dos EUA, e de que a intervenção orçamental é muito mais necessária, o que coloca em causa o (relativamente) pequeno tamanho do pacote de recuperação europeu (ver Figura 2, que compara as quedas totais de PIB em 2020 aos pacotes de retoma propostos).

Uma política de recuperação europeia pouco ambiciosa pode ter várias consequências políticas que vão muito para além da macroeconomia. Há uma relação causal entre estagnação económica e a ascensão de movimentos populistas, que se verifica em diferentes eras da história e regiões do mundo.² Daqui se infere que evitar uma situação de recuperação anémica, como se registou após a Grande Recessão, e garantir uma retoma próspera para todos (principalmente para os mais afectados por este choque) possa ser essencial para garantir a sobrevivência da própria União Europeia.

Figura 2

¹ “Europe should go big on fiscal policy too”, Financial Times, 22 Fevereiro 2021

² Ver, por exemplo, Colantone & Stanig (2019) “The Surge of Economic Nationalism in Western Europe”, Journal of Economic Perspectives.

* As opiniões aqui expressas vinculam somente o autor e não reflectem as posições do Federal Reserve Bank of St. Louis, ou do Federal Reserve System.

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