Sebastião Bugalho, Analista Político
Quando Ursula Von der Leyen tomou posse como presidente da Comissão Europeia, Bruxelas surpreendeu-se com o arrojo (ou com a ingenuidade) de uma proposta: Von der Leyen, ex-ministra da Defesa alemã,
anunciava uma “Comissão mais geopolítica”. Volvido pouco mais de um ano, a afirmação foi ingloriamente testada por velhos adversários e novos problemas.
A pandemia é o inevitável protagonista desse acentuar, tendo acelerado alterações nos equilíbrios de poder entre a Europa e as demais superpotências que já antes decorriam. Se essas eram placas tectónicas em movimento, a covid-19 foi um sismo que veio evidenciar essas mudanças. O abanão sentiu-se e os governos nacionais agarraram-se ao que puderam. Para os Estados-membros da União Europeia, o instinto inicial foi um misto de esperança comunitária com realismo protecionista. Isso viu-se a leste, onde as doações chinesas foram exultadas com pompa mediática, ao centro, onde a falta de solidariedade entre vizinhos foi desoladora, e um pouco por todo o lado, perante a falta de vacinas garantidas pela União e a procura de alternativas por parte de cada um, face a esse falhanço.
Nos idos de março, mais de um ano após a chegada do coronavírus a solo europeu, o governo alemão dava uma terceira vaga como inevitável devido a essa falta de vacinas. Se tal não corresponde ao maior fracasso político do projeto europeu desde a sua fundação, dificilmente algo corresponderá. A Comissão Leyen, que conseguiu o feito de responder em força à crise económica e social com o programa “NextGenerationEu” e com a possibilidade (outrora impensável) de vir a mutualizar-se dívida, falhou clamorosamente no que à vacinação diz respeito. É olhar os números.
Segundo dados recolhidos pela NewStatesman há menos de dois meses, França tinha vacinado 4 560 pessoas enquanto o Reino Unido o fizera a 319 038 no mesmo espaço de tempo. Três em cada 100 cidadãos europeus foram vacinados até então; 14 em cada 100 britânicos já o haviam sido. Não é somente uma derrota política; é uma tragédia humanitária. O maior desafio da história da UE apareceu e a UE não lhe soube responder – pelo menos, até agora. O problema é que, numa crise sanitária, a corrida contra o relógio é, necessariamente, uma corrida para não perder mais vidas. E elas foram perdidas.
Para um cidadão europeu que tenha perdido a mãe, um filho, o companheiro ou companheira, a perspetiva de saber que Israel tem a população inteiramente vacinada e que os Estados Unidos da América têm, proporcionalmente, o triplo das inoculações registadas na Europa só pode ser arrasadora.
Ao mesmo tempo, ao longo do mesmo ano, a Comissão foi repetidamente achincalhada internacionalmente em matérias de política externa – ora humilhada em Moscovo na semana em que Alexei Navalny foi ilegalmente detido, ora curvada comercialmente diante de Pequim, cujas violações de direitos humanos são crescentemente públicas.
Somando estes fracassos, sobra-nos uma questão: se a Europa não serve para representar a democracia que fundou, nem para salvar vidas numa pandemia, serve para quê? Para o mercado comum? Para a moeda única? E se se resumir a isso, poderá chamar-se “união” ou “comunidade”? Ou será antes uma “guilda”?
É que uma guilda não sobreviverá ao século XXI.
(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)