Sábado, Abril 20, 2024

A Democracia ameaçada

Diogo Queiroz de Andrade
Diogo Queiroz de Andrade

PORTUGAL LEGISLATIVAS

A DEMOCRACIA, EM ESPECIAL A DEMOCRACIA LIBERAL, ESTÁ AMEAÇADA. A FALTA DE SOLIDEZ DAS INSTITUIÇÕES, O AUTORITARISMO DIGITAL E A CRISE DE MIGRANTES E REFUGIADOS SÃO APONTADAS COMO ALGUMAS DAS CAUSAS. TEMOS UMA SOCIEDADE E UMA ECONOMIA DO SÉCULO XXI GOVERNADAS POR UM SISTEMA POLÍTICO DO SÉCULO XIX. O QUE PODEMOS ESPERAR NO FUTURO?

A Freedom House, que mede anualmente o índice de democracia no mundo, registou em 2018 o 13º ano consecutivo de declínio nas liberdades. É um fenómeno global, que tem várias causas e que está a ser avidamente estudado. Mas já não há dúvidas. A democracia, em especial a democracia liberal, está ameaçada como nunca esteve neste século. E a crescente deriva nacional-populista de nações como a Índia, o Brasil e a Turquia garantem que 2019 vai confirmar a continuação da crise. A Freedom House aponta como causas a falta de solidez das instituições nas democracias recentes, o autoritarismo digital e a crise de migrantes e refugiados. Mas o fenómeno é complexo e merece ser dissecado convenientemente.

Na passagem do milénio, o mundo era mais fácil de explicar. A globalização ainda tinha consequências maioritariamente positivas, a Europa celebrava a libertação dos países que tinham estado sob o domínio soviético e a integração europeia corria a bom ritmo. O terror expresso na viragem do século com o ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque consagrou no imaginário de muitos a maior ameaça à democracia: o terrorismo de actores não governamentais cujo único fito é provocar o medo para fazer colapsar as instituições. Sem dúvida que o terrorismo foi – e é – uma ameaça à estabilidade interna das democracias, mas acabou por ser rapidamente ultrapassado por um outro fenómeno bastante mais complexo. A sociedade global e digital, que começou a ganhar forma precisamente na viragem do século, demorou uma década a ganhar dimensão e menos de duas a assumir-se como ameaça à democracia liberal. Os factores em jogo são variados.

E vale a pena começar com as redes sociais, que são um exemplo paradigmático desta década. Em 2012 foram saudadas como a salvação da democracia, por causa do papel que tiveram nas primaveras árabes que pareciam ser o tiro de partida para um movimento libertário que varreria o norte de África. Tudo aconteceu ao mesmo tempo: os smartphones generalizaram-se, as redes sociais massificaram-se e as comunicações deixaram de ser centralizadas. A informação passou a ser transmitida de forma directa, em rede, sem intermediários. Wael Ghonim, o activista que fundou o movimento que levou à transição egípcia, escreveu um livro chamado “Revolution 2.0” em que o Twitter e o Facebook são alardeados como heróis dos princípios democráticos – mas nem foram precisos cinco anos para o mesmo Ghonim concluir que “as ferramentas que nos aproximam são as mesmas que nos destroem”. Em 2017 o cenário já era claro: o Facebook, o Twitter e o Youtube eram máquinas perfeitas para espalhar desinformação e funcionaram como meros instrumentos na orquestra de entidades que queriam enriquecer (como as máfias macedónias), derrubar democracias (os serviços secretos russos) ou ambos em simultâneo (a Cambridge Analytica e suas sucessoras). O Facebook ainda conseguiu piorar o seu registo ao contribuir activamente para o genocídio em Myanmar, para campanhas de desinformação estruturadas e para colocar em causa o consenso científico sobre questões como o aquecimento global e a vacinação. Já a Google ponderou criar uma versão censurada do seu motor de pesquisa para servir os interesses chineses e assim tomar parte no maior acto de repressão informativa da história.

Ao mesmo tempo, a globalização foi contribuindo de forma decisiva para tornar o mundo menos desigual, reduzindo a disparidade entre os países mais desenvolvidos e os que para aí caminhavam. A China assumiu-se definitivamente como uma potência global, graça a uma mistura perigosa de nacionalismo económico, capitalismo de estado e diplomacia musculada que estendeu os seus interesses a todo o mundo e abriu conflitos com as economias que deixaram de beneficiar com a transferência de empregos e tecnologias para paragens distantes. Sobre este último ponto, vale a pena ler o mais recente livro de Bruno Maçães, “Belt and Road”, que explica bem o que está em causa.

A crise financeira que se transformou, de facto, numa estagnação económica foi o enquadramento de problemas mais profundos. E aquilo que começou como um problema no ‘subprime’ nos Estados Unidos transformou-se numa crise de confiança que afectou todas as instituições: média, partidos, bancos, estado central e instituições internacionais. A incapacidade de resposta dos estados e a descrença no sistema conduziam a uma tensão crescente no tecido social. E começava a expor-se a duplicidade da globalização: ela serviu para aproximar as nações, mas foi também o mote para aprofundar o fosso dentro de cada país industrializado. As vítimas da globalização são as massas não-educadas dos países desenvolvidos, que subsistiam graças a empregos não-qualificados – precisamente os que migraram para a Índia, para a China, para o Vietname e para o México. Foram essas vítimas que, ressentidas, se tornaram o alvo predileto de um discurso populista e identitário que promete o melhor para “os nossos” desde que se excluam “os outros”. Para alimentar esta fogueira surgiram novas achas, como a fraude que levou à guerra do Iraque, as revelações de Edward Snowden e os Panama Papers, que confirmam a desconfiança sobre as instituições e alimentaram novas teorias da conspiração.

Nos Estados Unidos, o discurso nativista levou à eleição de Trump, ao recrudescer do racismo e aos campos de concentração para migrantes latinos. Na Europa conduziu ao Brexit, a afogamentos repetidos no mediterrâneo e à eleição de proto-ditadores na Hungria, na Polónia e em Itália. E expôs ainda uma preocupante inércia dos “líderes do mundo livre”, que não souberam defender os valores liberais que deveriam promover.

Em “The Great Convergence”, Richard Baldwin explicou de forma abrangente o estado do ciclo económico que presidiu à globalização e que está agora a reformatar o mundo, com consequências graves para a democracia. Mas vale a pena tentar um enquadramento histórico mais amplo, que encontre referência em paralelos com o passado. Foi isso que fez Carl Benedikt Frey, que foi à procura de um momento na revolução industrial comparável com a actual transformação computacional. O seu livro “The Technology Trap” recorda que os benefícios que a revolução industrial trouxe no longo prazo não apagam os cinquenta anos de miséria a que foram sujeitos os trabalhadores manuais. O mesmo é dizer que os luditas tinham razão e que a deriva tecnológica aumentou de forma real a desigualdade. Se isso hoje acontecer com a revolução computacional, será mais um problema dramático que as democracias terão de resolver – e há cada vez mais dúvidas de que estejam preparadas para o fazer.

O problema não é tanto a transformação científica e tecnológica: desde o iluminismo que esta representa uma ameaça às instituições, que por regra são imobilistas e conservadoras. A questão é a rapidez com que tudo acontece agora, deixando mais exposta a impreparação das democracias liberais para lidar com esta transformação tecnológica. O aparelho de estado (seja ele transnacional, nacional ou local) não está preparado para responder com rapidez, aumentando os riscos sobre a democracia com a inépcia da acção.

O Institute for Democracy and Electoral Assistance, fundado em 1995, publicou em 2017 um estudo chamado “The Global State of Democracy” em que explorava a ideia de resiliência das instituições – e definia como princípios essenciais a flexibilidade, a inovação e a capacidade de adaptação de forma a sobreviver a ameaças e crises. É este ciclo que hoje está em falha, porque não consegue responder com a velocidade necessária às transformações do mundo. Temos uma sociedade e uma economia do século XXI governadas por um sistema político do século XIX. E isso torna a incerteza face ao futuro muito mais assustadora.

Freedom House, which measures the world’s democracy index every year, witnessed in 2018 the 13th consecutive year of freedom decline. This is a global phenomenon with many causes and is being currently and eagerly studied. But let there be no doubts. Democracy, especially liberal democracy, is under threat as never before in this century. And the growing national populist drift of nations like India, Brazil and Turkey are clear indicators that 2019 will witness a continuation of this particular crisis. Freedom House points to the lack of soundness of institutions in recent democracies, digital authoritarianism and the migrant and refugee crisis as the main causes. But the phenomenon is complex and needs to be duly and thoroughly analysed.

The world was easier to explain at the turn of the millennium. Globalization still had mostly positive consequences, Europe was celebrating the liberation of countries previously under Soviet rule and European integration was proceeding well. The horror expressed at the turn of the century with the attack on the New York Twin Towers was retained in the minds of many as the biggest threat to democracy: the terrorism of non-governmental actors whose sole purpose is to cause fear and the collapse of institutions. Terrorism was – and is – undoubtedly a threat to the internal stability of democracies but it was quickly superseded by a far more complex phenomenon. Global and digital society, which began to take shape precisely at the turn of the century, took a decade to gain size and less than two decades to become a threat to liberal democracy. There are many factors at play.

And it is worth starting with social media, a paradigmatic example of this decade. In 2012 they were hailed as the salvation of democracy for their role in the Arab Springs that seemed to be the starting shot for a libertarian movement that would sweep across North Africa. Everything happened at the same time: smartphones became widespread, mass social media and communications were no longer centralized. Information was now transmitted directly, in a network, without intermediaries. Wael Ghonim, the activist who founded the Egyptian transition movement, wrote a book called “Revolution 2.0” in which Twitter and Facebook are touted as heroes of democratic principles – but it didn’t even take five years for Ghonim to conclude that “The tools that bring us closer are the same tools that destroy us.”    In 2017 the scenario was already clear: Facebook, Twitter, and Youtube were perfect machines for spreading misinformation and became mere instruments in the orchestra of entities wanting to get rich (like the Macedonian mafias), overthrow democracies (the Russian secret services) or both at the same time (Cambridge Analytica and those that followed). Facebook has even managed to worsen its record by actively contributing to the genocide in Myanmar, to structured disinformation campaigns and to undermine the scientific consensus on issues such as global warming and vaccination. As for Google, it considered the possibility of creating a censored version of its search engine to serve Chinese interests, thereby taking part in the largest act of information clampdown in history.

At the same time, globalization was making a key contribution to make the world less unequal, reducing the disparity between the more developed countries and those on the way there. China has definitely taken on the role of global power, thanks to a dangerous mix of economic nationalism, state capitalism and muscular diplomacy, spreading its interests around the world and starting conflicts with economies that were no longer reaping the rewards from job and technology transfer to distant places. On this last point, it is worth reading the most recent book by Bruno Maçães, “Belt and Road” which explains well what is at stake.

The financial crisis, which in fact resulted in economic stagnation, served as the background for more serious problems. And what started as a subprime problem in the United States turned into a crisis of confidence that affected all institutions: the media, parties, banks, the government and international institutions. The inability of states to react and the disbelief in the system led to increasing tensions in the social fabric. And the duplicity of globalization was beginning to come up: it served the purpose of bringing nations together, but it was also the motto for the gap increase inside each industrialized country. The victims of globalization are the uneducated masses of developed countries that survived thanks to unskilled jobs – precisely those who migrated to India, China, Vietnam and Mexico. It were these victims who, resentfully, became the favourite target of a populist and identity discourse that promises the best for “our people” as long as “the others” are excluded. To fuel this bonfire new insights emerged, such as the fraud that led to the Iraq war, the revelations of Edward Snowden and the Panama Papers, confirming the lack of trust on institutions and fuelling new conspiracy theories.

In the United States, the Nativist discourse led to the election of Trump, the resurgence of racism and concentration camps for Latin-American migrants. In Europe it led to Brexit, frequent deaths by drowning in the Mediterranean and the election of proto-dictators in Hungary, Poland and Italy. It also exposed a worrying inertia of the “leaders of the free world”, who were unable to defend the liberal values they should promote.

In “The Great Convergence”, Richard Baldwin explained in a comprehensive way the state of the economic cycle that presided over globalization and is now reshaping the world, with serious consequences for democracy. But it is worth looking for a broader historical framework to find references and parallels situations in the past. This is precisely what Carl Benedikt Frey did, who started looking for a moment in the industrial revolution with similarities to the current computing transformation. His book “The Technology Trap” he recalls that the long-term benefits that the industrial revolution has brought did not erase the fifty years of misery that manual workers were faced with. The same is to say that the Luddites were right and that technological drift really increased inequality. If the same happens today with the computing revolution, it will become another dramatic problem that democracies will have to solve – and there is growing doubt as to their capacity to act accordingly.

The problem is not so much scientific and technological transformation: since the illuminism it has been posing a threat to the institutions, which have a tendency to be immovable and conservative. The big issue is the pace at which everything happens now, exposing even more the unprepared liberal democracies to the need to cope with this technological transformation. The state apparatus (be it transnational, national or local) is not prepared to respond quickly, thereby increasing the risks for democracy given its incapacity to take action.

The Institute for Democracy and Electoral Assistance, founded in 1995, published in 2017 a study called “The Global State of Democracy” which explored the idea of institutions’ resilience – and defined flexibility, innovation and adaptability as key principles to survive threats and crises. This is the missing cycle today given the inability to quickly respond to the transformations taking place in the world. We have a 21st century society and economy rules by a 19th century political system. And that makes uncertainty about the future even more frightening.

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