Quinta-feira, Abril 25, 2024

A Corporate Governance no novo mundo multi-stakeholder: realidades e desafios

António Gomes Mota, Professor Catedrático da ISCTE Business School

A afirmação de uma visão mais plural da interação da empresa com os múltiplos ‘stakeholders’ que gravitam no seu ecossistema é, provavelmente, o principal elemento de mudança na dinâmica do ‘corporate governance’. Esta nova centralidade de uma visão mais inclusiva quanto ao papel e relevância dos ‘stakeholders’ na gestão empresarial está a ser cada vez mais assumida por governos, reguladores, investidores e também pelos gestores. Vejamos alguns exemplos emblemáticos.

Nesta última década assistiu-se à emergência da designada ESG – Environment, Social and Governance que concretiza um novo quadro de análise da atividade da empresa, focando o seu impacto no meio-ambiente (emissões de CO2, tratamento de desperdícios, poluição, etc.) a valorização do fator humano (formação, equidade das grelhas salariais, acidentes de trabalho, etc.) e a relevância de boas práticas de governance (códigos de ética, níveis de litigância, etc.). De um modo crescente os investidores (particularmente os institucionais) passaram a tomar decisões sobre as empresas onde iriam investir tendo justamente em atenção os resultados obtidos em termos dos principais indicadores ESG. Um exemplo paradigmático desta nova realidade está na carta que Larry Fink, CEO da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, dirigiu em janeiro deste ano aos CEO´s de empresas cotadas e em que define o combate às mudanças climáticas como um elemento decisivo na ação empresarial, urgindo os CEO´s a definirem para as suas empresas uma estratégia de obtenção da neutralidade carbónica e, em simultâneo, criarem um conjunto de métricas para se ir avaliando o respetivo progresso nesse objetivo.

Em agosto 2019, 181 CEO’s das maiores empresas norte–americanas subscreveram um manifesto que redefine o propósito da empresa transportando-o de uma centralidade focada na remuneração dos acionistas para uma dimensão ‘multi-stakeholder’, que se focaliza em novos objetivos como a entrega de valor aos clientes, o investimento nos colaboradores, o tratamento justo e ético dos fornecedores e o apoio às comunidades onde a empresa opera. (Figura 1)

Figura 1

A União Europeia tem em consulta pública um conjunto de iniciativas de fomento de uma ‘corporate governance’ sustentável que irão provavelmente ditar, entre outros aspetos, o alargamento dos deveres dos administradores (passando a incluir deveres de zelo pelos interesses dos diferentes ‘stakeholders’) e o reporte obrigatório de evidência de ‘due diligence’ relativamente ao respeito pelos direitos humanos e impacto ambiental nas operações da empresa e na sua cadeia de abastecimento.

Esta nova realidade de valorização dos diferentes ‘stakeholders’ tem importantes implicações ao nível da ‘governance’. Sublinham-se três, em particular.

Traz para plano de destaque a necessidade de as empresas definirem, através do seu órgão de topo, o conselho de administração, o seu propósito (‘corporate purpose’) e fazê-lo de um modo suficientemente claro e preciso que possibilite a definição de métricas que avaliem o seu grau de cumprimento e o seu subsequente escrutínio. E, não menos importante, releva a importância de disseminação e consolidação de uma cultura organizacional articulada com o propósito da empresa e que seja um catalisador de motivação e alinhamento de toda a organização. (Figura 2)

Figura 2

Incrementa, também, e previsivelmente de modo significativo o papel da informação não financeira, com uma clara musculação das obrigações de reporte e subsequente auditoria.

Finalmente, impacta diretamente na configuração dos modelos de remuneração variável dos gestores executivos que deverão refletir esta visão alargada de ‘stakeholders’ e, num futuro não muito distante, espelhar também a concretização do propósito definido pela empresa.

Por outro lado, esta nova realidade também coloca uma questão porventura difícil de responder: em que termos e com que critérios se identifica, caracteriza e se mede o que serão os melhores interesses dos diferentes ‘stakeholders’?

Poderá parecer relativamente claro que no vértice do processo de decisão que conduz à definição, concretização e posterior escrutínio do propósito ‘multi-stakeholder’ da empresa ou à consideração, numa base menos formal, dos interesses dos diferentes ‘stakeholders’ na sua estratégia e desenvolvimento, deverá estar o conselho de administração. No entanto, dever-se-á também ter presente o papel de investidores institucionais enquanto acionistas da empresa à luz do que já se referiu de crescente domínio da matriz de análise ESG. E neste âmbito prevalecerá a visão (e métricas) destes investidores no modo como analisam a empresa e como irão tomar as suas decisões, seja na aquisição, reforço ou venda de posições acionistas, seja no apoio ou criação de movimentos de pressão junto do conselho de administração, seja ainda e na sua condição de acionistas, na votação de deliberações da assembleia-geral. Assim, e ainda antes de qualquer tipo de análise interna da empresa, há desde logo um enquadramento de mercado que inevitavelmente acabará por condicionar ( tanto mais quanto maior for o peso dos investidores institucionais no capital e a ambição da empresa em se financiar internacionalmente) a discussão interna de como se concretiza a integração dos interesses dos diferentes ‘stakeholders’.

Mas, independentemente do condicionamento que o mercado acionista possa impor, a questão que se continua a colocar é a de como os interesses plurais dos diferentes ‘stakeholders’ estarão refletidos no conselho de administração. Iremos evoluir para alguma forma de representação de interesses? No modelo dual alemão, por exemplo, esse tema está bem definido em relação aos trabalhadores, cujos representantes eleitos têm lugar no conselho de supervisão da empresa, o órgão que nomeia e supervisiona a gestão executiva. Mas se no caso dos trabalhadores, caso se o pretenda, parece relativamente simples concretizar um qualquer sistema de representatividade, o mesmo já não se poderá dizer relativamente a quem poderia zelar pelos interesses da comunidade, dos clientes ou dos fornecedores. Pense-se, numa grande empresa e no seu impacto no país, que numas dimensões será à escala nacional e, noutras, à escala mais local, porventura até em locais diferentes. Como refletir esta multitude de interações com a comunidade? Que tipo de representação e representatividade poderemos definir? E relativamente aos clientes? Se calhar espalhados por geografias distintas e mais ou menos concentrados nos canais B2B ou B2C.

Um outro caminho, provavelmente menos complexo e mais coerente, será o de assegurar no processo de eleição de um conselho de administração que haja no órgão pessoas que possam, pelo seu conhecimento e experiência, aportar ao conselho a visão dos diferentes ‘stakeholders’ (uma visão de portfolio e de mapeamento de conhecimento, experiências e competências). O sucesso deste caminho provavelmente recomenda a existência de um estado de maturidade no grau de profissionalismo e independência nos processos conducentes à nomeação e eleição de administradores. Mas mesmo neste caminho, importa assegurar adicionalmente uma acrescida formalização da responsabilidade de acompanhar e escrutinar os interesses dos diferentes ‘stakeholders’, nomeadamente a nível de uma comissão especializada do conselho, que dinamizará esta dimensão. No mesmo sentido e a nível da gestão executiva, a criação de um Chief Stakeholder Officer (ou designação similar) daria também a toda a organização o sinal da importância do tema (um pouco como o CRO – Chief Risk Officer que agora está presente em todos conselhos de gestão executivos da banca).

Mas independentemente do caminho que se prossiga, ficará também no ar um debate e um confronto entre os objetivos dos diferentes interesses em jogo. Que prioridades atender, quando, e inevitavelmente irá haver, objetivos contraditórios ou conflituantes. O conselho de administração poderá no futuro passar a ser um palco mais intenso de negociação e de compromisso, que marcará a definição da estratégia e das políticas da empresa. Nesse plano não será indiferente o modo como os diferentes interesses estarão presentes, se através de algum tipo de mecanismo de representação (que tenderá a incrementar o volume da discussão) ou simplesmente através da existência de um conselho de administração que reflete o valor da diversidade e, em particular, a experiência e o conhecimento das necessidades e aspirações dos diferentes ‘stakeholders’. De igual modo, acrescida atenção deverá ser dada aos aspetos de natureza mais comportamental na seleção e gestão do conselho de administração, pois a haverá um novo espaço e crítico, para a interação, a negociação e o estabelecimento de compromissos sobre objetivos e prioridades. Neste âmbito, o papel e figura do Chairman ganhará outra dimensão.

Estas são apenas algumas interrogações, dúvidas e reflexões à volta deste novo mundo ‘multi-stakeholder’ e do seu impacto no governo e na gestão das empresas que vai colocar inúmeros desafios.

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

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